segunda-feira, dezembro 21, 2009

Mia Couto 2

Assim desfia o menino seu relato. Havia, entre sua manada, um muito triste boizarrão. De manhã até de noite o bicho boiava em rasteira solidão, esquecido de si, dos capinzais e das obrigatórias ruminações. Seus olhos felpudos seguiam todas distracções. Tudo lhe era pretexto, fosse o estremecer de uma sombra, fosse o farfalinar de uma borboleta tricotando seu voo. O pastorzinho se agastava: que doença estaria a consumir o animal? E se decidiu a segui-lo, de luz a lés. Foi então reparou que o bicho se prendia na visão de uma dada e considerada garça. A ave pernalteava-se, se juntava às nuvens, suas gémeas: sempre e sempre a atenção do boi nela se centrava. O ruminante se imobilizava, impedido. O pastor chambocava o bovino a ver se ele manadeava. O varapau, vuuum-ntáá, estalava nos costados. Nem valia a pena. Pois ele sacudia os lentos cornos e seguia, de impossível, impassível.


Sem nenhum comer, o bicho definhava-se. O pastor nem sabia como explicar a seu tio, dono da criação. Certa noite, ao juntar suas migalhas, o pastor viu aquilo que duvidava de contar. Pois que o boi esticava o pescoço para a lua e declamava mugidos que nunca foram ouvidos. De repente, se agitou todo seu corpo, o bicho parecia estar em parto de si mesmo. De sua garganta se afilaram os gemidos que se foram vertendo, creia-se, num cantarinhar de ave. Às duas por uma, ele começou a minguar, pequenando-se de taurino para bezerro, de bezerro para gato chifrudo. Em violentos arrepios se sacudiu e os pêlos, aos tufos, lhe foram caindo. No igual tempo lhe surgiam plumas brancas. Em instantes, o mamífero fazia nascer de si uma ave, profundamente garça.


O recente pássaro, então, percorreu o redor, procurando não se sabe qual quê com seu olhar em seta. Até que, de súbito, se vislumbrou uma outra garça, essa mesma que lhe fazia, enquanto boi, demorar o coração. E o transfigurado mamífero acorreu em volejos, se chegando à autêntica ave. Dançou em repentinos saltos, as pernas de nervosa altura, como se estivessem ainda a soletrar os primeiros passos. A terra parecia demasiado pesada para aquele habitante dos céus. Ali ficaram os recíprocos dois, em namoros despregados, soltando brancas fulgurações.

Mia Couto, in Terra Sonâmbula

sexta-feira, dezembro 18, 2009

Área de trabalho (aka 'Desktop')

É preciso amar para compreender essa voluptuosidade do olhar que se repousa sobre o objeto amado, que não se cansa de ver aquilo que está impresso na imaginação, mas que tem sempre um novo encanto.

José de Alencar, in O Guarani

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Mia Couto 1

Enquanto me preguiçava sem destino, ia ouvindo os ditos da gente: esse Kindzu apanhou doença da baleia. Falavam da grande baleia cujo suspiro faz o oceano encher e minguar. Minhas parecenças com o bicho traziam lembranças do antigamente: nós, meninitos, sentados nas dunas. Escutávamos o marmulhar das ondas, na quebra do horizonte, enquanto esperávamos ver a baleia. Era ali o lugar dela aparecer, quando o sol se ajoelhava na barriga do mundo. De repente, um ruído barulhoso nos arrepiava: era o bichorão começando a chupar a água! Sorvia até o mar todo se vazar. Ouvíamos a baleia mas não lhe víamos. Até que, certa vez, desaguou na praia um desses marmíferos, enormão. Vinha morrer na areia. Respirava aos custos, como se puxasse o mundo nas suas costelas. A baleia moribundava, esgoniada. O povo acorreu para lhe tirar carnes, fatias e fatias de quilos. Ainda não morrera e já seus ossos brilhavam no sol. Agora, eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si. Como se aquele fosse o último animal, a derradeira oportunidade de ganhar uma porção. De vez enquanto, me parecia ouvir ainda o respirar gigante, engolindo vaga após vaga, fazendo da esperança uma maré vazando. Afinal, nasci num tempo em que o tempo não acontece. A vida, amigos, já não me admite. Estou condenado a uma terra perpétua, como a baleia que esfalece na praia. Se um dia me arriscar num outro lugar, hei-de levar comigo a estrada que não me deixa sair de mim. Vistas as coisas, estou mais perdido que meu mano Junhito.


Mia Couto, in Terra Sonâmbula

terça-feira, novembro 17, 2009

Passionné de Cham



Não poucas vezes eu cito aqui um e outro autor, guardando entre estes escritos trechinhos de obras que me tocaram. Nunca citei, no entanto, esse que é (eu diria “o meu autor favorito”... mas nós sabemos que eu sou lunar, então digamos:) o meu autor favorito hoje: Patrick Chamoiseau, o Oiseau de Cham. E nunca o citei porque é quase blasfêmia cortar um pedacinho da perfeição. Pirataria.

Mas hoje o que eu celebro é tão especial, quem eu celebro é tão especial, que resolvi trazer dois trechos do Oiseau, os dois do romance Texaco.

Um fala de mim:

Le lendemain, en questionnant les autres, elle se sut récipendiaire unique de cette chose indicible. Penchée sur son jardin, elle demeura inquiète : son coeur battait plus large ; sa tête abritait des pensées sans coutumes.

Patrick Chamoiseau, in Texaco


O outro seria a epígrafe desta postagem, que seria um cosido de citações, se eu soubesse fazer o que me proponho, se eu fosse mais experto, se a postagem fosse o que devia ser: somente o que está para baixo desta epígrafe:


La sève du feuillage ne s’élucide qu’au secret des racines.
Patrick Chamoiseau, in Texaco




espaço em branco entre esses versos e aqueles outros que diziam
olhai o fundo dos meus olhos,
por este prisma de lágrimas,
olhai, olhai, e avistareis
, com um arrepio subindo desde a cintura até os cabelos molhados da nuca, os olhos embaçados pela luz do dia, água do banho ou de lágrimas, quem sabe, de repente um vazio que nem todas as obscenidades que Jacyr continuava dizendo poderiam preencher, tornar engraçado ou mais leve, dentro daquela saudade que não ia embora por mais que o tempo passasse e dentro dele, mesmo sem lembrar, apenas agindo, todos os dias eu acordava e tomava banho, escovava os dentes e fazia todas essas coisas rotineiras, igual a alguém que aos trancos, mecanicamente, continua a viver mesmo depois de ter perdido uma perna ou um braço que, embora ausentes, ainda doem – sem poder evitar, inesperadamente, sem querer evitar, outra vez lembrei de Pedro.
-- E aquele rapaz que vinha sempre aqui?
Hein, eu disse, quem.
-- Aquele rapaz bonito, aquele meio dourado. Aquele dos olhos claros, nunca mais apareceu.

Caio Fernando Abreu, in Onde andará Dulce Veiga?




Agora sorria com esse sorriso enjeitado dos que não agem claro e... procedendo mal? porque! Passara a perna esquerda sobre a mesa branca, semi-sentado. Balançava-a num ritmo quase irregular. Quase. E olhava sobre a mesa uma folha perdida com que a mão brincava. Os desapontados se deixam olhar, Fräulein olhou Carlos.

Essa foi, sem que para isso tivesse uma razão mais forte, a imagem dele que conservaria nítida por toda a vida. O rapazinho derrubava o braço desocupado sobre a perna direita retesa. Assim, ao passo que um lado do corpo, rijo, quase reto, dizia a virilidade guapa duma força crescente ainda, o outro, apoiado na mesa, descansando quebrado em curvas de braço e joelho, tinha uma graça e doçura mesmo femínea, jovialidade!

Mário de Andrade, in Amar, verbo intransitivo


E é isso a postagem.


22 ans. Joyeux anniversaire, Cham, joyeux anniversaire.

segunda-feira, outubro 19, 2009

Poslúdio

Felicidade é terminar um Oiseau de Cham com outro à espera.

sábado, outubro 17, 2009

JdF 3 : Alok 1


(Figura postada aos 16 de maio de 2012.)


Ai, meu Deus, não é possível. Será que ele vai ficar ali muito tempo? Fico me perguntando o que teria sido se eu tivesse descido do ônibus, não o tivesse visto e tivesse simplesmente feito o meu caminho até ao final da rua, até ao portão da Pousada. Ai, melhor nem pensar.

Como é mesmo que eu faria? Ah, tá. Lembrei: trepo naquela madeira, subo pela escadinha que fazem as linhas de farpado da cerca, subo na marquise. E depois? Fico lá em cima eternamente. Ai, te acalma, bi, vai dar tudo certo. Ele nem te viu aí. Fica quietinha, nem respira, ele não te viu. Ai, meu Deus, ele me viu.

Cristo Jesus! ele tá vindo pra cá? ai, Pai, ele tá vindo pra cá!

Ai, merda, solta. Puts, se meu pé ficasse preso naquela farpa do arame eu nem sei o que tinha sido. Se bem que... ai, inferno, será que ele vai ficar ali latindo até quando?

Um carro. E eu faço o quê? Aceno, SOS em código Morse? Peço a Deus a morte, é isso que eu faço. O povo é foda mesmo. Agora vê... eu aqui em cima, trepado, o cara passa de carro, põe meia cabeça pra fora como quem diz que você ta fazendo aí?, não pergunta, não dá meia parada, vai-se embora. E eu aqui nessa situação. Nessa roça. Quanto de Juiz de Fora será que é roça isolada igual a isso aqui? Jesus, se eu vier pra cá, vou querer morar no Centro. Lá é tão bonitinho.

Mais um? Arrarrá. Vou morrer aqui. Não é possível. Que é que eu faço? Descer daqui nem a pau. Que horas são, hein? Jesus, passa da meia-noite. E a prova é amanhã. Que lindo. Plena véspera da prova teórica do concurso, e eu aqui, linda e loira, em cima do telhado dum ponto de ônibus. Pensa, Everton, o que você faz, o que qualquer um faria num momento de total desespero?

(Pega o celular.)

“Alô, Mãe?”

segunda-feira, outubro 12, 2009

Segundo interlúdio

Felicidade é um amigo verdadeiro, viagem longa, um DVD de presente, um oportuno pedido de desculpas.

sábado, outubro 10, 2009

JdF 2: Alok 2

Era o primeiro dia, né? Ela chegou assim como quem não quer nada, óculos escuros raibã bem grandes na cara toda, um vestidinho leve e solto, branco de bolinhas pretas. O que calçava? Não me lembro, não tem importância.

Depois de os alunos terem entrado, se sentado e se ajeitado na sala, ela se apresenta e explica que vai contar uma estória com duas personagens: Paulo e o seu mulinho. Apresenta os dois numa figura projetada na parede e vai contando a historinha, repetindo frases com os alunos mesmerizados, provavelmente se perguntando de onde saiu aquela louca. Que contava uma história, que dava aula, que ensinava. Que falava latim.

segunda-feira, outubro 05, 2009

Primeiro interlúdio

Felicidade é um varal de chão, cheiro de roupa limpa, erva doce, aloe vera e chuva fresca.

sábado, outubro 03, 2009

JdF 1: Alok 3

Intocável, na sua calça jeans de lycra, lá ia ela, louca como sempre, deitadinha, tranqüilinha, como se nada estivesse acontecendo, como se nem fosse com ela. Do lado de fora lá fora, uó uó uó da sirene. A última vez que tinha ouvido aqueles barulhos tinha sido depois do seu último afogamento, quinze minutos nágua, e o resgate, lembrava bem, feito por um surfista dos braços abastados.

E foi parar na Santa Casa, horas e horas de soro. Desta vez acompanhada dum moreno.

Tudo começou assim: vamos fazer um exame, vamos tirar líquor da sua espinha. Pra quê? Uai, como sempre, pra ver se ela se abalava, devia ser. Pra que mais se fazem esses exames absurdos, minha gente? Me explica pra quê-por quê alguém vai enfiar uma agulha longa na sua espinha e tirar a agüinha que está quietinha lá, segurando o cérebro da pessoa boiando lá no topo? Só pode ser teste de paciência. Esses médicos têm formas e mais formas de testar a paciência do paciente.

“Se a sua cabeça doer muito amanhã, você vai pro Pronto Socorro e diz que fez extração de líquor. Eles saberão o que fazer: vão te pôr no soro”, disse a médica. Isso na quarta. Aí na quinta-ontem, a cabeça doía, mas ela foi pra cama, que ela não era boba nem nada. Queria era dar a sua aula de Latim e ser feliz no dia seguinte.

Mas no dia seguinte, depois do almoço, depois duma caminhadinha no Sol e do balanço chique-chique do ônibus até chegar no câmpus, a cabeça resolveu fazer tóinho-nhóim e simplesmente dilatar até quase explodir. E pensar que hoje era o dia dos particípios... Quanta frustração cabe numa vida, meu Deus.

terça-feira, setembro 29, 2009

Dúplice

Dois amores (dei baixa em um). Duas cidades. Duas viagens. Duas consultas. Duas injeções. Dois livros, dois autores. Duas monitoras. Dois amigos. Mais dois amigos. Mais dois amigos... E amanhã, duas dores. Deus...

quarta-feira, setembro 23, 2009

ele estava num de seus dias opacos,
inteiramente impermeável à clareza de minhas idéias.
Se ele estivesse desanuviado, teria grunhido
como faz quando percebe tudo --
um grunhido impreciso,
que nunca pude saber
se é articulado nos lábios, no nariz, nos dentes ou na garganta.
Autran Dourado, A glória do ofício, Solidão Solitude



Mas hoje não. Não me lembro de uma noite em claro desde São Paulo. Vejam aí. Eu postei. E agora me vejo aqui, no centro deste colchão, cercado de silêncio por todos os lados. Aliás, por todos os lados não: somente pelos de fora.


Faz o quê, meu Deus? duas semanas? É isso. Três, no máximo. Escrevi o email. E eu dizia como vai você, e como vão as suas coisas, e como estão os seus sonhos. Sem resposta. Mas um comentário: alerta vermelho, Everton, eu não tenho coração. E eu vaguei dias e dias pelas relojoarias de Juiz de Fora em busca de um. Sem sucesso. Caso perdido.


O fato é que as pessoas não estão acostumadas a serem queridas, não conseguem compreender ou aceitar que alguém se preocupe com elas, que alguém pense nelas, que alguém tente, debalde e ingenuamente, ajudá-las com horas de um pensamento carinhoso, de sorriso nos lábios, em que a imagem delas, felizes e completas na sua realização, seja o suficiente. Que ridículo. Eu não passo de um alguém, injusto e (inútil) escrevedor de emails babacas. Não poderei nunca ser o Mágico de Oz.

Juiz de Fora, dia 21 de agosto de 2009.

domingo, setembro 20, 2009

Such a portentous monster roused my curiosity. [...] With other men, perhaps, such things would not have been inducements; but as for me, I am tormented with an everlasting itch for things remote. I love to sail forbidden seas and land on barbarous coasts. Not ignoring what is good, I am quick to perceive a horror, and could still be social with it-would they let me-since it is but well to be on friendly terms with all the inmates of the place one lodges in.

Herman Melville, in Moby-Dick
(aka O livrinho da baleia)

sábado, setembro 12, 2009

"mas, enfim, cada um vê o que quer no fugaz desenho de uma nuvem."

I

Bonito, isso, né? Li num livro.

A última semana foi de vivências novas e memórias de virtualidades passadas. Vi tanta coisa, ouvi tanta história, estive com uma das minhas inumeráveis paixões em mente. Essa é uma que nunca citei aqui. O Fotógrafo. Aliás, minto. Já falei dele outras vezes, muitas até; mas ele reclamou do seu apelido, "uma metáfora infantil". Resolvi mudá-la. Agora ele se chama O Fotógrafo.

Mas eis que eu resolvi participar de um evento aqui da Letras chamado Encontros com a Literatura. O primeiro dia de conferência veio ilustrado por dois figurões: o Prof. Doutor Gilvan Procópio Ferreira e o Guimarães Rosa. O primeiro é chefe de departamento, uma figura generosa como poucos, cuja biblioteca particular fica aqui, na salinha de Literatura Brasileira, à disposição de quem quiser e se propuser a ler. E há títulos incríveis. O segundo, o Guima, é um autor diante de cujo nome eu não devia apor o artigo -- nunca o li. Tão vexante quanto verdadeiro.

Ao longo da sua fala, o Prof. Gilvan mostrou algumas mandalas, criação artística de Arlindo Daibert Amaral, ex-professor da UFJF. O que me chamou a atenção, bem mais que os trabalhos artísticos dele, foi a sua biografia: tendo estudado Letras aqui mesmo, voltou depois para o ninho como professor de Artes. E, ao que me consta, faleceu no meio de uma fala, sobre Artes. E coseu as Letras com as Artes, em obras como Imagens do Grande Sertão .

Diante disso, impossível não pensar nO Fotógrafo.


II

Aí chegou o domingo, pé de cachimbo. No sábado eu fui ao grande xópingue daqui, o Independência. Ai, Jesus, eu e as minhas dificuldades: confundo Guimarães Rosa com Graciliano Ramos, notam?, GR - GR. Corror. E agora achei de achar que Independência se chama Liberdade. Good grief...

No domingo eu fui conhecer o tal Mascarenhas. Já tinha visto notinhas de eventos no tal lugar no jornal (eu agora leio o Tribuna de Minas aos domingos, minha gente) e tava curioso de ir conhecer o espaço. Daí fui ver a exposição fotográfica de um Daniel Sotto Maior. A primeira coisa, à esquerda, é um texto, suponho eu da curadora. Uma lástima. Depois, um quadrinho: qualquer foto 50R. Fiquei espantado. Depois as fotos. Belinhas algumas, bonitas umas cinco, lindas umas duas. E pensei nO Fotógrafo.

Aí saí da exposição e fui conversar com a recepcionista, uma senhorinha chamada Raquel que é um poço de simpatia. É que o lugar é lindo... um curso de Mitologia ali seria um sonho. Mas agora já tou pensando num de teatro romano: tem dois grupos de teatro lá aos sábados, acho que colava mais. Enfim, voltando à Raquel, ela me mostra uma coisa e outra, e vamos parar na sala de Fotografia. Um espaço bem legal, com uns quatro ambientes e umas duas máquinas com cara de caras que logo, logo se perdem. O moço que seria responsável por ministrar aulas de Fotografia na cidade brigou com o prefeito, foi-se, evadiu-se, nunca mais se viu. Lúcio Sérgio Catilina. Humpf.

Ah, é. Aí eu pensei, de novo, nO Fotógrafo.


III


Daí veio o sábado 5. Nos tais encontros, era dia de Agualusa, um autor que eu desconhecia. Africano. Parece que anda morando no Rio faz um tempim.


O livro, O vendedor de passados, é interessante, tem uma lagartixa de narrador e umas cenas, histórias e parágrafos muito loucos. No meio disso tudo, três das quatro personagens principais são fotógrafos. A única personagem feminina, Ângela Lúcia, diz "Nem sequer sei se sou fotógrafa. Eu colecciono luz.", bem na página 55. Nada criativo que ela se chame Lúcia, talvez, mas é curioso que ela seja introduzida em cena em compração com uma prostituta, de quem a lagartixa, antes humana, foi apaixonada. E a prostituta se chamava Alba. Tanto pela luz da foto.


Mas, enfim, se foto é a escrita da luz, falemos da escrita. Aliás, quero falar da escrita da imagem. Que foto é imagem. Já que resolvi falar de fotos... Pois o livro é bem imagético. Além do trechinho que deu mote a esta postagem (que está na página 80 do livro), há os sonhos. A lagartixa (ou osga, como se chama no livro) tem sonhos de que se eiva o livro. Esses sonhos são narrados, e vira e mexe a lagartixa se revê humana nessas visões oníricas. E duas vezes se metalinguageia sobre sonhos.


(1) Na página 76, "--Deus deu-nos os sonhos para que possamos espreitar o outro lado --, disse Ângela Lúcia: -- Para conversarmos com os nossos mais-velhos. Para conversarmos com Deus. Eventualmente, com osgas."


(2) E na página 102, fala da mãe da osga... rs: "-- A realidade é dolorosa e imperfeita --, dizia-me: -- é essa a sua natureza e por isso a distinguimos dos sonhos."


E duas outras cenas me chamaram a atenção, e eu fiz questão de fazer correr o lápis:

(1) Na página 102: "Imaginem um rapaz correndo de moto numa estrada secundária. O vento bate-lhe no rosto. O rapaz fecha os olhos e abre os braços, como nos filmes, sentindo-se vivo e em plena comunhão com o universo. Não vê o caminhão irromper do cruzamento. Morre feliz. A felicidade é quase sempre uma irresponsabilidade. Somos felizes durante os breves instantes em que fechamos os olhos."


Isso me lembra algo que dizia (ou diz, que sais-je...) O Sonho.


(2) Na página 153: "A memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento. Vemos crescer por sobre as acácias a luz da madrugada, as aves debicando a manhã, como a um fruto. Vemos, além, um rio sereno e o arvoredo que o abraça. Vemos o gado pastando lento, um casal que corre de mãos dadas, meninos dançando o futebol, a bola brilhando ao sol (um outro sol). Vemos os lagos plácidos onde nadam os patos, os rios de águas pesadas onde os elefantes matam a sede. São coisas que ocorrem diante dos nossos olhos, sabemos que são reais, mas estão longe, não as podemos tocar. Algumas estão já tão longe, e o comboio avança tão veloz, que não temos a certeza de que realmente aconteceram. Talvez as tenhamos sonhado. Já me falha a memória, dizemos, e foi apenas o céu que escureceu."


E um último trecho, que me fez, ele também, pensar nO Fotógrafo, está na página 145:


"Existem pessoas que revelam, desde muito cedo, um enorme talento para a desventura. A infelicidade atinge-os como uma pedrada, dia sim, dia não, e eles recebem-na com um suspiro conformado. Outras há, pelo contrário, com uma estranha propensão para a felicidade. Estas são atraídas pelo azul, aquelas pela embriaguez dos abismos. Há pessoas destinadas a sonhar (algumas são bem pagas para isso); há pessoas nascidas para trabalhar, práticas e concretas e incansáveis, e há pessoas com jeito de rio, que vão da nascente à foz sem quase nunca abandonarem o leito."

sábado, agosto 29, 2009

Previsivelmente...

... não terminaria este mês sem uma segunda postagem.

Pensei em contar histórias de Juiz de Fora, mas agora elas são muitas, tantas quanto os meus cansaços neste fim de um sábado agitado. Então, resolvi postar um texto que tenho guardado há algum tempo. Foi uma conversinha dessas cotidianas com o meu amigo RHT. Já não me lembro de quem falávamos, mas hoje acho que podíamos dizer o mesmo dum amigo que temos em comum. Cortei as partes da conversa que poderiam comprometer esse meu amigo tão querido.

Everton diz:
7288-4XXX... conhece esse no.?

RHT diz:
naum conheço

RHT diz:
o q tem o número?

Everton diz:
rs
nada
me mandaram uma msg dele
naum sei de quem é

RHT diz:
vai ver é de um q vc apagou por raiva

Everton diz:
rs... mto provavelmente
ou de um dos inúmeros q nunca fizeram parte da agenda do celular.
não passarm de post-its.
e post-its se perdem com facilidade.

RHT diz:
eu q o diga


E ainda tem tanta gente se achando o furinho do pudim...

domingo, agosto 02, 2009

Tu vens, tu vens... eu já escuto os teus sinais!



Queria escrever este texto em inglês. Ele ia começar assim bem chique: Only twice did I... Adoro inversões. Mas vou me poupar o esforço. E os vexames. Vou fazer assim: conto duas lembranças da infância e me norteio por elas para chegar a esse ponto cotidiano. Primeira memória, falo da minha situação habitacional atual, segunda memória, falo do que só fiz duas vezes. Depois conto quem espero. Com essa estrutura bonitinha, quem sabe as idéias arrumadas não me ajudam a selecionar com critério um belo vocabulário, e vocês não dão a sorte de um texto gostoso de ler? Às vezes rola.


Eu devia ter uns dezessete ou dezoito anos, morava ainda no Rio, já não via muita tevê por aquela época, mas estava na sala, e estava passando algo como
Barrados no Baile ou qualquer coisa que o valha. Se não me engano, era uma cena de discussão que se encerrava com alguém jogando outro alguém de uma sacada, e o outro alguém caía numa piscina, no térreo. Eu fiquei chocado. E frustrado: eu realmente queria viver a vida da minha idade, com problemas e convivências da minha idade. Até antes de vir para São Paulo, ouvi muitas vezes a ladainha do "nossa, você parece ser muito mais velho!". Bem, esse comentário se relacionava à minha forma de pensar, de me comportar e de falar. E também era influenciado pelas companhias de que eu me cercava, sempre pessoas mais velhas.


Pois não demorou muito para que aquele
wish upon a star se tornasse realidade. A vida em São Paulo, no CRUSP (os dormitórios estudantis da Universidade de São Paulo, onde morei por aproximadamente sete anos), me fez viver em meio a pessoas da minha idade ou mais jovens, e em meio aos seus problemas corriqueiramente repetitivos. Hoje eu moro num apartamento bem grande, de três quartos, que eu divido com um dos meus melhores amigos, o Fá, e um colombiano mequetrefe. Ai, minha gente, mequetrefe mesmo... sinto muito. Porque eu gosto de quem eu gosto, e ninguém tem nada a ver com isso.


Somente duas vezes eu limpei uma casa inteira sozinho. Detesto faxina. Mil vezes chamar uma faxineira que ter que ficar passando pano no chão e tirando o pó dos móveis e afins. Good grief... é uma trabalheira... Hoje-domingo foi a segunda vez. Daí que estou tão blerguitemente cansado que nem vou pra hidroginástica nenhuma.
A primeira vez foi no mês passado, faz algumas semanas, para a visita do Pé de Feijão. Limpei e tirei pó como poucos, como poucas vezes. Ele tem uns probleminhas respiratórios, e eu resolvi que poeira, no meu quarto, não era uma possibilidade.



engraçadinhas as imagens que os povos fazem, nas suas línguas, quando desenham conceitos: o nosso cotão é o "coelhinho de poeira", em inglês, dustbunny (esta foi o Pirata quem me ensinou... lindinho) e, em francês, um "carneirinho", um mouton


Também, estava sozinho no apartamento fazia uns quatro dias; a limpeza seria minha, e também seria eu quem a desfrutaria. Mas o Pé de Feijão acabou não vindo; e o colombiano me chega com um dos seus dois namorados atuais (não se espantem! quando eu cheguei aqui, ele tinha três fixos e, às quartas, chegava sempre com um desconhecido, que passava a noite... adoro fofoca). Cozinhou lula, fez barulho até não poder mais, deixou a sala e a cozinha um lixo. "Nunca mais", eu me disse.



Quando morávamos em Rocha Miranda, um lugar de que ainda guardo muitas lembranças, inclusive a de um pesadelo que se reiterava na minha primeira infância e de que a minha mãe deu cabo com perícia (outra hora conto), mômi-mômis limpava a casa uma vez por dia, neurótica que era com essas coisas. Uma das lembranças que tenho é do Pinho Sol. A embalagem, o esbranquiçado feito nuvem na água do balde, o cheirinho no ar.


E ela chega hoje, a minha Mica. Então o apartamento precisava ser limpo. Daí eu fui ao mercado, comprei desodorante de vaso
Glade, sabor bosque de pinho, e Pinho Sol. E limpei a casa toda.


Eis a fonte da imagem.

domingo, julho 19, 2009

Metalinguagem





ou Metapoesia

ou enatividade.blogspot.com

ou O Blóguite do Everton

ou eu-Penélope



Teço textos como quem vive.

Tramo estórias com a lividez de quem chegasse ao fim.

Entranço palavras e crio a expressão como quem degusta com os olhos.

Urdo o silêncio expressivo de entrelinhas loquazes como quem sussurra um segredo.

Costuro referências que se reencontram como quem revisita sentimentos.

Remendo passados como quem recria o mundo, nas letras.

Arremato a vida no correr da pena, como quem corrige a si mesmo, caneta verde em punho.



Imagem: Frigga spinning the clouds, J. C. Dollman

terça-feira, julho 14, 2009

Uma aventura de piratas sob encomenda


Faz hoje uma semana que ele partiu. Quando ele veio, o Caçador e o Mensageiro já o haviam anunciado. Por um ruído do transmissor, eu havia compreendido que o seu nome era Pedro, pedra, mas podia ter sido Davi, duvidoso, só que nem era. O seu nome era outro, um que ele me revelou mais tarde, em segredo. Adoro segredos.


Bem, o fato é que eu estava preocupado com a sua chegada. Nunca imaginei que eu, um reles professor de línguas, fosse um dia conhecer um pirata. Eu tive muito medo, no começo. Eu o desenhava com tapa-olho, espada, perneta e com um papagaio falante, e qual não foi a minha surpresa quando ele apareceu, à minha porta, numa quinta-feira, com a bandana vermelha de sangue, tapando o olho esquerdo, uma roupa rota e nenhum animal falante no ombro. Uma capa gasta, puída, com buracos e rasgos. Nada manco, mas com botas também gastas. Era como se a roupa não importasse muito, e daí eu comecei a compreender que o mito se faz de essência, não de aparência. E sem espada.


E, meu Deus!, ele era lindo. Fascinante, isso, é essa a palavra.


Disse-lhe que tirasse a bandana. Ele tinha vindo para isso, para que eu lhe curasse a ferida. A visão lhe era turva e ele compreendia ainda muito pouco do que se tinha passado. Logo vi que a ferida tinha-lhe sido infligida por um sofrimento moral, espiritual até, talvez, e eu sabia bem que isso se curava com rezas, mezinhas e afeto. Sem afeto nada se cura. Ele era recluso e tinha medo de se abrir, e eu tinha medo da imagem que sempre me fizera de um pirata.


Uma vez eu o vi, na calada da noite, conversar com o Mário Sérgio. O Mário Sérgio é, em geral, bastante reservado. Fala pouco, fala com poucos. Mas é excelente conselheiro. O papo era fluido e eu me disse que o Pirata devia ser confiável. O próprio Mário Sérgio se pôs na sua cabeça, por vezes, agarrando-o com as unhas, e esse mesmo tigre tão feroz ficou dias agarrado ao computador depois que o Pirata partiu, como que guardando o posto onde por último ele tinha sido colocado, como que aguardando uma mensagem que declarasse que o Pirata retornaria.


Um dia eu compreendi umas linhas de raciocínio do Pedro, o Pirata. Ele tinha comentado que gostava de desenhar, mas tachava os seus próprios desenhos de rabiscos. Olha... eu o vi "garatujar" uma vez, e tamanha expressão tinha pouco de rabisco, muito de encantamento. O poder do risco. Entendi que estávamos juntos e de corpo e de alma quando ele me desenhou, um dia, e o meu retrato era diferente de todos os outros. E não só pelos desenhos ele se experessava: ele também contava histórias. Como ninguém. E sabia histórias e Histórias. Certa feita, fez-me apontar para um país aleatoriamente, num mapa; selecionado o país, ele me contou a História daquele povo, ricamente influenciada e determinada pela sua geografia. Contava histórias que sabia, criava as que não existiam.


Um mês se passou. Era a hora de acabar com o segredo: eu tinha vivido na sua vida por algo em torno de trinta dias, eu que tinha sido descrito assim, no seu "caderno masculino de anotações pessoais" (porque a palavra "diário" teria soado muito feminil para um pirata):


Mas agora... agora eu tenho um segredo. Um segredo bom, mas que me fez chorar muito. E olha que é muito difícil me fazer chorar.
Bem, eu só estou escrevendo isso para dizer mesmo.
Para dizer que eu realmente precisava de um amigo agora.


E o segredo terminava ali, com a minha retirada. Eu precisava partir para Hinée, uma cidadezinha cinzenta e portuária, onde havia um lago com um monstro, onde homens vestiam saiotes e as mulheres tocavam um instrumento de sopro. Mas eu parti mudado: aprendi que um nome revela os seus semas de acordo com o contexto: o Pirata que eu conheci revelava no seu nome os semas de "liberdade" e "aventura", eu soube, porque ele nunca me aprisionou, como podia ter feito (e como talvez eu mesmo tenha querido), nem nunca deixou de viver a sua vida por causa da dor que o olho ferido lhe causava. Quanto ao tesouro que todo pirata busca, não sei se ele o encontrou enquanto estivemos juntos, ele nunca o mencionou. O que sei é que, após o tratamento que eu ministrei, bandana branca e capa refeita, a sua visão já não era a mesma.






Ei, você aí que leu a minha estorinha e agora balança a cabeça, dizendo que "isso não é uma aventura de piratas", preste atenção! Não escrevi este texto para agradar a você. E se você de fato acha que receber um pirata na sua casa não é nada demais, eu te desejo boa sorte. Humpf.

domingo, julho 12, 2009

Agora


Agora eu ouço Halo continuamente. Com um som de It's all coming back to me now ecoando ao fundo. Monomaniacamente.


Agora eu olho para a luz do Sol que passa por entre os galhos das árvores e observo as nuvens de algodão branco lá longe -- e penso na poesia fotográfica que tudo isso pode se tornar com um clique.




Agora tudo brilha e tudo ri. Hoje acordei atrasado. Fui pro SESC de Pinheiros, como faço aos sábados e domingos, para a minha aula de hidroginástica... perdi a primeira sessão, fui pra segunda. Nem gosto muito da segunda, sempre cheia... muita gente. Cheguei lá, meu exame dermatológico tinha expirado... Como cheguei em cima da hora, não dava tempo de refazê-lo antes de entrar pra piscina. Aula perdida. Resolvi ir almoçar. Na fila, vejo que hoje era o último dia de cartaz de As Troianas, que eu queria muito ver. Mas eu me distraí, e os ingressos já se haviam esgotado. Mas eu não me importei, tudo brilha e tudo ri. A paixão não é assintomática quando chega. Nem quando volta.


Agora eu rio, danço e choro diante da hebecã (gracinha!...), com a naturalidade de quem vive à parte. Um balé muito meu, com gosto de reconquista e cheiro de café forte passado em coador de pano. E, enquanto ajeito o foco da câmera, olho de esguelha pro feijãozinho que plantei. Um pé de feijão.


Agora eu espero a hora certa, com a sensação gostosa de que ela vem. "Estou de obrigação." Olho pro telefone celular e os sms me trazem sorrisos que vão de orelha a orelha, os telefonemas me trazem sensações diversas.


Estou de obrigação.
Entendo que o tempo passou e que ele me ajudou a maturar, que me ajudou a processar medos e incertezas... Abrir um parágrafo com "estou de obrigação" deve ser indício disso... Espero que o mesmo tempo tenha ajudado a me tornar o homem que eu precise ser.

Cíclico... crítico... cítrico?


I pray it won't fade away.

sexta-feira, junho 26, 2009

A Revelação

Um manancial de águas tranqüilas.



Então ele entrou ali. Vinha já preparado, sabia a notícia que podia receber. Sabia as implicações daquela notícia e o que de mudança ela acarretaria. Mas já não se estressava ao considerar todas essas coisas. Tinha tido uma boa metade de mês de reflexões, de orações, de meditação e preparação para o que viesse. Se viesse.

Fazia quinze dias, ali, naquele mesmo posto, ele tinha ido buscar os resultados de uma coleta. A assistente social que o recebeu, então, depois de uma ou duas horas de espera (já nem sequer se lembrava), havia se dirigido com ele para uma saleta no fundo do prédio, onde ela, sentada do outro lado da mesa, provavelmente cansada de um dia de trabalho, desatenta e distraída, começa a ler o papel:

"Bem... temos aqui... HIV, positivo; hepatite A, negativo..."

Ele, ao ouvir "HIV positivo", algo por que realmente não esperava, sem levantar a voz ou sequer mover-se na cadeira, pergunta em tom brando:

"Como?"

Isso foi em maio, pelo meio do mês. Em março ele tinha feito um exame anti-HIV e recebido o resultado: negativo. No ano anterior, no ano passado, em setembro, ele havia se exposto a uma relação de risco. Nada demais: tinha usado camisinha, mas a prática do sexo oral, quando tinha estado com um machucado no céu da boca, era preocupante. Não sei se ele teria se precavido se tivesse sabido, antes do ato, que o seu parceiro era soropositivo. Ele estava tão encantado com aquele menino, lindo, cheiroso, inteligente como poucos... não sei se ele teria se precavido. Enquanto esperava, no ano passado, que passasse o período da janela, ele mesmo havia considerado e reconsiderado que, se esse fosse o preço a pagar, ele estava disposto. É. Mais que encantado, ele estava apaixonado. E isso basta.

Talvez, agora, quando recebia a notícia, ele se arrependesse de ter tido tais pensamentos... mas eu acho que não. Ele sempre me disse que valorizava pouco a vida: não que quisesse morrer, mas que morreria, como mortal, e que pouco lhe fazia diferença se isso se daria agora ou em dez anos. A única coisa que o afastava do suicídio em horas de desespero era um misto de valores religiosos embotados e de frouxidão, "eu jamais seria capaz... sou frouxo demais", ele me repetia, às vezes.

Mas, no posto, em meados de maio, a assistente social então levanta a cabeça, acordada do torpor em que estava, e pergunta, assustada com a sua própria irresponsabilidade:

"Você não sabia?"
"Não... é a primeira vez que isso aparece num exame meu."

Ela, semi-desesperada, procura uma explicação. Algo que dissesse que a sua leitura anterior estava errada. O Elisa dava positivo, o Western Blot inconclusivo... talvez fosse mais uma das falhas causadas pela "grande sensibilidade" do Elisa (assim falam eles, personalizando o exame, como se ele tivesse vida). Sugerem-lhe que faça nova coleta e aguarde quinze dias. Ele, mui tranqüilamente, assim o faz. No final de maio, o Western Blot já não esconde o que antes só se imaginava. "Virou", ele ouviu dizerem. E assim, sem nenhuma alteração na sua vida, ele saiu do posto, como se nada tivesse acontecido. Tinha virado soropositivo.

sábado, junho 20, 2009

Então...


Então anteontem eu fui a Santo Amaro ver o meu médico, pela última vez. Ele me transferiu. Agora não vou mais comer pastel e tomar garapa toda vez que for ao médico, curtindo a culpa de saber que estou fazendo algo errado. Adoro pastel com garapa.

Então ontem eu fui ver um filme francês, do Panorama, no Reserva Cultural. Adoro francês.

Então hoje eu volto à hidroginástica. Adoro bancar o idiota, pulando na piscina.




Motivo

Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste :
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.



















quinta-feira, junho 11, 2009

E é-se um pequeno segredo sobre um grande segredo.

E é-se um pequeno segredo sobre um grande segredo.


Neste Longo Exercício de Alma...

Cecília Meireles

Ciência, amor, sabedoria,
- tudo jaz muito longe, sempre...
(Imensamente fora do nosso alcance!)

Desmancha-se o átomo,
domina-se a lágrima,
vence-se o abismo:
- cai-se, porém, logo de bruços e de olhos fechados,
e é-se um pequeno segredo
sobre um grande segredo.

Tristes ainda seremos por muito tempo,
embora de uma nobre tristeza,
nós, os que o sol e a lua
todos os dias encontram,
no espelho do silêncio refletidos,
neste longo exercício de alma.



Quando me propus escrever quatro postagens este mês, eu as tinha delineado (e eu as tinha delineadas) com mestria. Descobri que guardava o tal segredo, e eu nunca fui bom com segredos, era melhor contá-lo logo. Mas é um segredo que pode ser dolorido. Não se conta um segredo que pode ser dolorido, assim, como se não fosse nada... Como os leitores deste blogue são amigos queridos, alguns distantes, era preciso prepará-los para o segredo. Então eu planejei as quatro postagens. Mas eu sabia que elas podiam mudar, na minha cabeça, com o passar da semana que eu previra entre cada uma.


Metódico. Sempre o fui. Eu postaria amanhã, mas estarei ocupado. Com ele que me tem em segredo. Sim, o dia inteiro. E eu estou apaixonado. Ou me apaixonando, não sei ao certo. Só sei que "o instante existe e a minha vida está completa". Falando nela, descubro este poema, cuja segunda estrofe descreve tudo quanto eu tinha planejado dizer nesta segunda postagem: a mudança. Sem aflição.


Desmancha-se o átomo,
domina-se a lágrima,
vence-se o abismo:
- cai-se, porém, logo de bruços e de olhos fechados


E fiquei feliz de voltar à tia Ceci. Com o medo da overdose, porque a terceira postagem será uma volta às raízes, a transcrição dum poema dela que eu cito a cada dois minutos, porque ele diz tudo, fala do meu estado de alma, assim como este fala do exercício da alma, quando descobre as mudanças que a vida impõe. Na quarta postagem, a revelação. E, se não fosse o longo exercício de alma, sinônimo da singeleza de expressão da tia Ceci, eu teria postado uma musiquitcha do Pato Fu, hoje... Aliás, posto o essencial da letra dela, au cas où. Até semana que vem.


Vida Diet


Composição: John


A gente se acostuma com tudo
A tudo a gente se habitua
E até não ter um lugar
Dormir na rua
A tudo a gente se habitua

[...]

Não vai ser diferente
Se eu me for de repente
Se o céu cai sobre o mundo
E o mar se abrir
Em um inferno profundo

sexta-feira, junho 05, 2009

Mas isso foi...

Durante muito tempo eu quis escrever esta postagem. Não o fiz antes porque temia expor alguém(ns), mas hoje me parece que não mais.

Este mês eu farei quatro postagens. Tenho-as delineadas e delimitadas na minha cabecinha insana. Tenho dito a alguns amigos que "eu guardo um segredo (acho)", frase que venho utilizando como subnick no msn. Hoje cheguei à conclusão de que, sim, eu guardo um segredo. E me refiro a "segredo" numa acepção muito própria: eu só usei esta palavra, aqui neste blogue, uma vez, no ano passado. É um segredo como o que me foi contado, àquela época, que eu descobri que agora guardo.

Mudando de assunto, não é novidade para ninguém que eu amo Porto Alegre. Desde 2006, quando descobri aquele paraíso, faço uma viagem àquela cidade ao menos uma vez por ano.

("Qual a relação entre tudo isso, Everton?" -- Bem, hoje falo de exposição, segredo, ano passado, Porto Alegre... sei lá. Ao final das quatro ditas postagens, tudo estará claro. Além disso, só fiz tantas postagens num mês no ano passado, quando estava, justamente, em Porto Alegre.)

Em 2006, durante a minha primeira viagem a Porto Alegre, uma propaganda dessas de cartaz grandão, colada na janela traseira dos ônibus, me chamou muito a atenção... Não era para menos: um homem lindo, com um corpo divinamente esculpido, à direita, estava cercado por uma espiral de arame farpado. (Procurei no Google imagens o tal cartaz, mas nem consegui achar... Se alguém souber onde encontrá-lo, por favor, depois me conta.) Enfim, à esquerda, lê-se um texto: você ainda isola os soropositivos? A idéia, clara, era mostrar que o preconceito não está com nada, pois não se sabe, de fato, quem está infectado com o vírus. Quem imaginaria que aquele modelo lindo era soropositivo? E quem deixaria de amar aquela imagem linda depois da descoberta?

Num país como o nosso, em que o conhecimento adquirido não é necessariamente conhecimento divulgado, nem (muito menos) preconceito vencido, seria importante que quem conhece as coisas e causas abrisse a boca a falar. Daí teve essa noite, em que uns amigos conversavam na sala do meu apartamento, e um deles fala do seu pavor de pegar doenças e de como se protegia no sexo, etc e tals. Dois dos amigos que discutiam na sala eram biomédicos. De repente, sai o assunto da AIDS, do HIV, dos soropositivos...

"Ai, eu não ficaria com um soropositivo!"
"Nem eu!"
Saio eu do quarto: "Não? Eu sim. Eu me casaria com um. A grande paixão da minha vida é um rapaz soropositivo".

Choque. Bem, gente... Se todos estão dispostos a fazer sexo somente com camisinha, se de fato (será?) é isso que fazem... (Ouvi mesmo um desses amigos uma vez comentar que era só levar um pedacinho de PVC sempre na bolsa, pro caso dum sexo oral pintar no meio do dia, do nada... blá-blá-blá...) Que diferença faz fazer sexo com um soropositivo ou com um soronegativo? Enfim... Achei tudo muito preconceituoso, muito sem-noção... e vinha de quem tem, ex cathedra, a informação e o conhecimento da coisa.

Daí, em 2008, pouco depois de me apaixonar pelo tal soropositivo, veio-me a visita anual à Porto Alegre. Recebi, pelas minhas andanças, um panfletinho que trouxe para mostrar a ele e que até hoje guardo comigo (também não consegui achar uma imagem dele no Google, mas, no meio das minhas buscas, achei um videozinho que o valha, bem aqui). Tratava de uma campanha para orientar casais sorodiscordantes, para que o relacionamento pudesse fluir com a facilidade que, em princípio, o conhecimento e a (in)formação devem proporcionar. Um raio de esperança: talvez o moço por quem eu era (ou sou?) apaixonado me aceitasse, soronegativo.

Mas isso foi naquela época, quando eu só pensava nele.
Mas isso foi naquela cidade, quando eu estava em Porto Alegre.

quinta-feira, maio 14, 2009

SNAPSHOTS

Cena 1: Um coração puro

Essa foi em um dos meus fartamente recheados passeios a Santo Amaro. Lugarzinho anedótico, aquele, viu? Pois ia eu descendo do trem, cheio de gente mal-encarada, como sói acontecer, e vejo um moço bonito no meio daquele monte de gente feia. Raridade. Daí o moço vê que eu o estou olhando, me olha de volta, me tira de cima abaixo e começa a me fazer um sinal estranho, com o indicador esquerdo, que apontava para o bolso direito. Olhei, vi o sinal, achei estranho, fiquei com medo, parei de olhar, fiz de égua. Que eu não desço do salto...

Quando me voltei pra porta, prestes a descer, vejo o meu reflexo no vidro. O meu bilhete único, suicida, no bolso direito da minha calça, tava quase caindo...


Cena 2: Discípula fiel

Daí que ia eu do lado de cá, com um pouco de pressa. Tava indo pra aula de hidroginástica no SESC. Daí a tiazinha vem lá do outro lado da rua, da frente da Igreja Universal do Reino de Deus, com um daqueles jornaizinhos deles na mão.

Ela me tinha visto desde longe, e eu a ela; ela veio atravessando com cuidado e a lentos passos, toreando os carros que vinham pela rua, só para chegar até mim, aqui do outro lado. Entrega-me o jornal e me convida para uma das reuniões da Igreja; eu sorrio simpaticamente, agradeço o impresso e o convite, sigo o meu caminho com um grande sorriso interno. Que bonito alguém que tem uma meta e a cumpre com majestade.


Cena 3: Foi por acaso

Que eu descobri o Mawaca, quando a Mica foi a um xou e me chamou. Depois me dei conta de que já tinha assistido a um xou delas com o meu primeiro namorado, nos idos de 2002 (acho).

Foi também por acaso que descobri a Lila Downs, quando a Lua-Mais-Vermelha ouvia um CD gravado com muitas músicas da mexicana. Paixão fulminante. (Ficou ambíguo: pela Lila ou pela Lua? Pelas duas.)

O mesmo CD (que não era da Lua), anos depois, me volta às mãos. Daí resolvo ouvir uma música, que eu sempre pulava, porque era em inglês (sim, professor de inglês eu sou... mas ganhei uma ojeriza da língua por uns tempos... não queria nem saber de nada). Descobri uma cantora chamada Susheela Raman, de voz doce-rouca, que cantava uma música de ares orientalizantes-orientalizados. A música fala de "Maya", possivelmente em referência à deusa... sei lá eu. Só sei que eu ouvia e entendia "Maria" e, pela letra, cri que era uma apologia à maconha. Risos. Fartos.

Falando nela, há algum tempo venho bolando uma nova postagem sobre O Sonho. Porque a gente ama quem a gente ama, e isso independe de tudo e de todos. Esta postagem mesma, com muito esforço, não foi toda sobre ele. Mas ei-lo: me apresentou Oren Lavie, de que conheço pouco, mas cujo clipe é fenomenal -- e as resenhas bem o reconhecem.

sexta-feira, março 06, 2009

Mighty

Pra não dizer que não falei das flores...

Eu me lembro de pouco, e agora mesmo a memória me é tão falha que mal consigo revisualizar as coisas. Enfim, é tudo tão novo, uma verdadeira constelação de sentimentos familiares que se misturam a coisas nunca dantes sentidas (e eu me refiro de fato a algo que vejo como uma aproximação de orientes)... Eram oito da manhã e o celular tocou com uma musiquinha que era, de certo, o tema de abertura ou encerramento de algum animé. Perguntei qual era o remédio que o alarme prenunciava e ouvi algo como cefalexina. Tinha visto a caixinha no armário da cozinha no dia anterior, imaginei que fossem as drágeas que estavam em cima do lavatório, no banheiro. Ele se senta, eu lhe entrego o comprimido, a garrafa dágua.

"Que foi?"

"Nada."

A pergunta foi provocada pelo meu movimento, ou pelo ruído causado por ele. Estava me levantando da cama, talvez para escrever este texto, não sei mais. Eu não estava com sono, ele podia ficar lá. Eu tinha acabado de ler Socrates in Love, um dos mangazinhos que mais me chamaram a atenção na prateleira que fica em cima da cabeceira da cama. Li à meia luz, ao lado da janela grande de batentes e venezianas, pintada dum vermelho escuro que muito bem combina com os móveis escuros do quarto, talvez de mogno. Chorei horrores, só para variar.

E, no centro, está ele. Os olhos verdes fechados, as pintas que se espalham nada uniformemente por toda a parte, sobretudo nas costas, a cabeça pousada num travesseiro vermelho em que se lê algo em japonês, nos mesmos caracteres para mim hieroglíficos que eu também vejo espalhados pelos cartazes de pano que têm ilustrações de diferentes mangás, pendurados aqui e ali. Desarmosiosa descombinação de cores, um travesseiro vermelho num lençol listrado de azul e branco, um edredom xadrez cinza-preto.

Fireworks, please.


São Paulo, 21 de fevereiro de 2009.

terça-feira, fevereiro 10, 2009

Quanto desamor...


Daí eu escolho o caminho mais fácil para chegar à estação, crente, crente que tou arrasando na minha escolha. Acho um saco quando tenho que ir a Santo Amaro, menos a viagem, mais a chegada e a estada. Lugarzinho fétido e sujo. Me incomoda nas ruas o tanto de coisas no chão, visão do que me enoja no Rio de Janeiro, do que me passa despercebido em Porto Alegre.

Então eu vou beirando a cerquinha do Eldorado. Quando chego ao portãozinho de saída, um moço com cara de "estou aqui há horas, por isso a minha salivinha está esponjando no canto da boca" vira para mim e me pergunta:

"O que você faz pelo meio ambiente?"

Oh good grief... Faz algum tempo que eu calculo os meus passos na frente do bandejão central para fugir do povo das fichinhas da Renner e outros casuais que nos abordam. Gente, que é esse negócio de "preenche a fichinha... só pra me ajudar..." que virou moda agora? PelamordeDeus! Bem, não deixa de ser engraçada a minha visão panorâmica entrando em ação e pondo a mim e ao RHT nos movimentos mais inusitados de quadris e pernas para escapar aos transeuntes assediadores, que estão sempre de fichinhas em punho.

Mas ontem eu não consegui escapar dos environment freaks. Eles estavam em filinhas polonesas paralelas, não havia escapatória possível. Com o passo apressado, eu viro a cabeça para trás e respondo:

"Absolutamente nada."

Até eu fiquei chocado. Deus meu, que grosseria com o pobre moço da babinha esponjante. E que mentira. Eu faço muitíssimo pelo meio ambiente: a quase totalidade do meu dia eu me devoto a manter a minha sanidade mental.

domingo, janeiro 11, 2009

Acrobata da Dor


Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, "gavroche", salta "clown", varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.


Cruz e Sousa
(24 de novembro de 1861-1898)