quinta-feira, março 27, 2014

O que há

 
    O que há em mim é sobretudo cansaço —
    Não disto nem daquilo,
    Nem sequer de tudo ou de nada:
    Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
    Cansaço.

    A sutileza das sensações inúteis,
    As paixões violentas por coisa nenhuma,
    Os amores intensos por o suposto em alguém, 
    Essas coisas todas —
    Essas e o que falta nelas eternamente —;
    Tudo isso faz um cansaço,
    Este cansaço,
    Cansaço.

    Há sem dúvida quem ame o infinito,
    Há sem dúvida quem deseje o impossível,
    Há sem dúvida quem não queira nada —
    Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
    Porque eu amo infinitamente o finito,
    Porque eu desejo impossivelmente o possível,
    Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, 
    Ou até se não puder ser...

    E o resultado?
    Para eles a vida vivida ou sonhada, 
    Para eles o sonho sonhado ou vivido,
    Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... 
    Para mim só um grande, um profundo,
    E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, 
    Um supremíssimo cansaço, 
    Íssimo, íssimo, íssimo,
    Cansaço...



- Álvaro de Campos

sábado, março 22, 2014

Alegreto triunfante



Aquela mala à esquerda é um suplício áulico. Imaginar as roupas que se poderiam ter posto ali, imaginar as viagens que poderiam ter sido feitas, tudo isso é supliciante. O guarda-roupa guarda peças que não cheguei a ver, é fato certo; vi o que havia para ver no cotidiano, duas ou três bermudas, uma ou duas camisetas, uma ou duas camisas, duas calças; vi um par de xortes pretos, desses molinhos de prática de esportes, que me trazem hoje a memória da tua timidez e da minha. Na cadeira lá do canto eu me lembro da minha primeira noite aí, da minha mochila xadrez, dos meus remédios, que tu quase sempre insistias para que eu tomasse mais cedo, antes da hora.

“Vem pra cama” – tu me dizias.

Na janela, as toalhas penduradas, que eu cria bem presas com os pregadores, fechavam-nos do mundo lá fora do teu quarto. Por entre as grades, que eu cria que nos protegiam na solidez de um ambiente que construíamos, ninguém poderia entrar e atrapalhar aquele sono. Aquele sonho. Aquele sonho que eu velava com cuidado, com cafunés e contemplações, como no dia em que tua irmã bateu insistentemente à porta, preocupada porque havia dias não te via. Não sei mais o que fazer com esse menino, me disse ela, com olhos amorosos que me pediam que te inculcasse juízo. Mas como? As drogas parecem ter sido o único meio que tu encontraste de lidar com tua cabeça confusa. Confusa como era a minha na tua idade, confusa como confusos eram os meus sentimentos na tua idade – como são os teus agora.

Na frente da janela, quase a bloqueá-la, tua escrivaninha. Lá havia prescrições e livros. Muitas prescrições, poucos livros, e inúteis, um computador e um par de óculos. Houve ali também fotos, memória de uma infância a que eu não estive presente, sorridente no quintal e no sofá de uma família que me acolheu. Foi a primeira vez que uma família me acolheu.

A cadeira de rodinhas segurava o ventilador e tu dormias sob aquele vento forte. Parecia que tu punhas a cabeça bem sob ele para que ele ventaneasse com força pra fora a confusão que nela reinava, pois era sempre assim que te deitavas, com a cabeça aerada, antes pelo vento só, depois também pelas drogas. E o ronco quase imediato, às vezes mais forte, em geral estavelmente indistinto, que se seguia ao teu fechar de olhos, ele era talvez o ruído que faziam os pensamentos que tu punhas pra fora à força de vento e medicamentos. Eu não sei. Sei que tu falavas enquanto dormias, tu falavas e eu cria que dialogavas, me esforçava por compreender, mas tu nunca quiseste me dizer nada. Havia também os gases, às vezes ruidosos, às vezes estrondosos, às vezes silenciosamente fétidos... mas deles eu nunca tentei compreender o sentido, porque julgava que saíam de ti sem teu controle, sem tua vontade – e eu nunca fui médico. Eu era apenas enamorado.

E do colchão pequeno, de solteiro, que se sobrepunha à cama grande, de casal, eu te velava o sono. Eu te velava a vida. Houve momentos em que tu subiste a este colchão e fizeste o que fazias sempre que eu me deitava: me puxaste pra junto de ti com teus braços grandes e me puseste entre parênteses no teu corpo na posição fetal que era a tua, para me assemelhares a ti, para declarar ao mundo (mas só ali no quarto, na cama, em segredo) que eu era teu. Mas isso foi em curtos momentos de uma curta convivência.     

Mas a porta do quarto se fechou. Tu a fechaste sem o meu aval, sem a minha presença. E se me fecharam com ela a cozinha onde comemos a tua alegria roxa, a sala onde incomodamos a tua mãe com nossa união tão alegre e frágil, o banheiro onde tu fazias a tua higiene obsessiva que molhava todo o chão, a cama da tua irmã onde dormimos agarrados embaixo do ar frio.


Restam-me as memórias. Depois da vilania do pirata, que partiu por causa do chamado dos mares e nunca voltou o mesmo, houve tu, que partes com tuas drogas, com tuas traições e autotraições; tu, leonino, fera ressabiada com um reino que era teu... de que trancaste a porta impiedosamente. 


quinta-feira, março 06, 2014

De uma cutícula que cresceu mais do que devia



Por um motivo qualquer que me escapa, eu estava indo para a Escola Paraguai. Tomei uma rua à esquerda e, enquanto olhava o celular e mexia em algum aplicativo, passei por um grupo de adolescentes na calçada. Encostada a uma van, uma delas comentou algo como “lá vai com o seu brinquedinho caro; não o larga, como se tivesse, de fato, tantos amigos com quem falar”. Lembro que me invadiu um medo, como se estivesse correndo o risco de ser assaltado e de perder meu “brinquedinho”.


Sigo na tal rua e me dou conta de que se trata da Ludgero Pinho, onde morei até meus doze anos, mais ou menos, e que ficava no mesmo bairro da Escola Paraguai. Estranho é que o prédio em que morei estava em construção... Mas essa rua terminava num valão – e eu sabia disso! – e não me levaria à Paraguai. Dei meia volta e, ainda mexendo no celular, encarei o medo de passar novamente pelo bando de adolescentes.


Penso que preciso almoçar e entro num restaurante, mas logo vejo que não é um estabelecimento onde eu tivesse coragem de comer. Ele era labiríntico e com uma entrada na frente e outra nos fundos. Resolvo atravessá-lo, na ilusão de que a Paraguai estaria na rua de trás. Passo por um dos corredores, e nele há três adolescentes (!), dos quais uma mostra uma espécie de coreografia, barrando minha passagem. Tento passar pela direita, ela vai para a direita; tento a esquerda, ela vai para a esquerda; quando consigo enfim passar, volto-me risonho pra trás e vejo que a moça no caixa, provavelmente mãe da adolescente, olha-a com ar de repreensão, por me ter travado o caminho tão distraidamente.


No corredor seguinte, também sinuoso, é onde estão os balcões com a comida para que as pessoas se sirvam, e há uma espécie de fila, de duas pessoas, talvez com pratos na mão. Tento passar e novamente vejo acontecer a cena da direita-direita, esquerda-esquerda, mas agora isso me irrita – tenho uma pressa enorme cujo motivo também me escapa. Reclamo: “não é possível! é a segunda vez que tento passar e se põem na minha frente neste restaurante!”. Consigo sair e vejo novas COHABs, imensas, tomando um vasto espaço com seu cenário habitual: muita gente, ruas mal calçadas, barulho, sujeira no chão. O cenário é pobre, cheio de COHABs e favelas – e isso me incomoda de alguma forma.


Não é aqui que eu devia estar. Será que me perdi? Olho pra minha mão e fico assustado: minha cutícula, enorme e macia, cresceu tanto no dedo mindinho que agora cobre toda a minha unha, como se fosse uma capinha plástica. Como cheguei a permitir isso? Não importa. Vou comprar um novo alicate de cutícula, porque o meu anda meio cego, e eu não acredito muito nisso de amolar alicate de cutícula.


Vejo uma farmácia bem pequenina, com toda a entrada de vidro fechada por causa do ar condicionado. Olho para dentro e enxergo, atrás do balcão, pendurado, um Mondial, R$32,60. Achei caro. Do outro lado da rua havia duas outras farmácias; uma delas parecia dessas Pague Menos da vida, ela é mais aberta, maior, tem algumas estantes de produtos que ficam ao léu, assim como que na calçada. Vi alguns alicates de cutícula desses que têm a parte de segurar de plástico; não gosto deles; nem me dou ao trabalho de ver o preço. E é preciso retomar o caminho para a Paraguai, pois estou me atrasando.


Ando até uma esquina. Do outro lado da rua passa um valão e eu acho que devo seguir à direita, mas alguém, que agora me acompanha, repara que a Escola fica do outro lado da linha do trem, apontando para o outro lado do valão. Eu concordo, com um sentimento de frustração por ter errado um caminho que me era tão familiar. Acho que não vou chegar lá.



Acordei com calor, já procurando o controle do ar para baixar a temperatura no quarto.