domingo, julho 30, 2023

Dos últimos dias

 

Adoro ritos, rituais, rotinas, e isso não é de hoje. Adoro os pequenos recursos que a gente descobre depois de certo tempo morando num bairro e as pequenas delícias que a gente vai incrustando no cotidiano graças às descobertas. 

Descendo uma estação antes da minha, não preciso andar até à parada pra pegar o ônibus que me deixa na porta de casa. Acontece que o ônibus passa a cada vinte minutos, e eu preciso sempre verificar se ele já passou, pra não passar vinte minutos esperando. Com o tempo, me dei conta de que esses vinte minutos são, na verdade, o intervalo ideal pra passar pelo mercado pra necessidades pequenas. Hoje, por exemplo, desci e comprei os ovos e pães com gergelim. Quando saí do mercado, foi atravessar a rua e entrar no ônibus. 

No meu bairro mesmo, Garstedt, eu me lembro de ter identificado, na época da pandemia e da redação da Tese, dois horários em que o Sol batia em dois pontos diferentes do bosque que começa na minha esquina. Durante aqueles dias difíceis de muita reclusão duplamente motivada, essa descoberta foi muito necessária. Esta semana foi muito difícil, e isso fez com que eu retomasse algumas práticas esquecidas, como alugar uma das bicicletas da cidade e sair pedalando ao léu, descobrindo paisagens de cores e cheiros diferentes. Uma das descobertas desta semana foi um pequeno jardim chamado Bustão no meio do parque da cidade, o qual me deu a nítida e levemente dolorida certeza de ter explorado minha atual cidade muito menos do que deveria. Confirmação disso são um jardim de flores multicoloridas que descobri no caminho pro Bustão (que cheiros doces!) e um livro que tenho (e  que pouco folheei) sobre os objetos artísticos espalhados pelas ruas e parques da cidade. A própria ideia do Bustão já é linda e poética: "Vinho, tâmaras, oliveira, trigo, cevada e romã -- no Bustão, o jardim bíblico de vinhos e frutos no Parque da Cidade de Norderstedt, crescem os sete frutos da louvada terra de Canaã e muitas outras plantas", segundo a descrição do panfleto.  

A semana foi difícil porque teve muito tempo dedicado a burocracia. Uma visita ao que tenho chamado de Departamento de Estrangeiros (a Ausländerbehörde) e outra ao que tenho chamado de Secretaria de Educação (a Behörde für Schule und Berufsbildung ou, popularmente, a Schulbehörde). Ir a esses lugares é sempre muito desgastante, traz consigo uma série de ansiedades e angústias ligadas a exigências absurdas e um dispêndio insalubre de tempo. Meu lado Poliana me convence a citar aqui somente o positivo: estão liberadas a autorização e a permissão (sim, pasmem: duas coisas diferentes, conseguidas em Departamentos diferentes, por meio de processos documentais diferentes) para eu começar a qualificação de adaptação para eu me "tornar" (aspas denotando ironia) professor de Latim. O contrato com a Secretaria de Educação está assinado e a posse se dará na terça-feira. 

No meio disso tudo, tenho continuado a leitura dos artigos de um dossiê bacana sobre novos começos, numa revista de Psicologia. Há duas aqui: Psicologia hoje e Psicologia te leva mais longe, ambas boas; a última, minha favorita; a primeira, a que venho lendo. Hoje li um artigo sobre a importância dos rituais e me impressionei quando reli o primeiro parágrafo deste meu texto, que tinha escrito faz pouco mais que uma semana. Estou vivenciando meus dias atuais entre dois ritos próprios das férias, o excesso de tempo na cama vendo séries e a retomada do russo, desta vez com aulas particulares e horas de tandem, por um lado, e alguns rituais do novo começo, por outro lado, o qual se marca, por ora, não só pelo encerramento de ciclos sisíficos junto à burocracia alemã, mas também pela preparação da mudança para um novo apartamento.

Contratação de transportadora, rescisão de contratos com a companhia de luz e gás e com a academia, mudança do contrato com a telefônica, caixas de papelão, malas e muitas sacolas de lixo têm sido (e vão ser) uma boa descrição destes dias passados (e das próximas duas semanas). Uma primeira faxina de três horas já rolou: só a cozinha do novo apartamento, com seus armários embutidos, consumiram esses 180 minutos. O plano é tirar mais um dia para a faxina lá, a terça, logo após a posse, já que a mudança se fará na quinta. E ela ainda acha que na última semana de férias, de 7 a 11 de agosto, ela vai fazer um curso intensivo online de russo: três horas por dia.   

 

         

terça-feira, julho 11, 2023

Como tem passado? -- ele me perguntou


Comecei a redigir este texto faz meses, numa semana de muito. Muitas alegrias, muitas ansiedades e muitos questionamentos. Ela começou com a expectativa de um reencontro com uma amiga querida, terminou com questionamentos duros sobre o que quero e quais caminhos percorrer para chegar lá.

A amiga querida, Sandra, esteve aqui em Hamburgo, acompanhada de filha e genro; foi maravilhoso revê-la e partilhar momentos íntimos de histórias presentes e passadas, passeio de barco, leitura de oráculos e comidas e comidinhas. Da alegria imensa que foram esses dois dias, fui parar de volta no mundo da realidade do meu trabalho atual, tão lindo quando cansativo. 

Trabalho, de tarde, em uma escola infantil de horário integral. Basicamente realizo o trabalho de "educador", na tradução literal da palavra pomposa que descreve a profissão em alemão, Erzieher, o que eu prefiro chamar de "guardador de crianças" -- como guardador de rebanhos. Esse chamamento tem mais que ver com a forma prática como vejo o meu fazer: criar laços, ouvir, ensinar coisas de relacionamento com os outros e com o mundo, resolver conflitos. Como na outra (professor de Latim), esta profissão me foi liberada graças às qualificações adquiridas no Brasil, pelos anos de Magistério, o já não mais existente curso de formação técnica para professores primários, e os de Licenciatura, agregados à graduação em Letras. Como para a outra, o reconhecimento dessas qualificações foi parcial, o que implica que preciso fazer "formações" para ser plenamente habilitado. No caso da firma em que trabalho, um total de 80h iniciais com temas específicos. Já revi psicologia do desenvolvimento, a importância dos brinquedos e brincadeiras na educação, a observação como ferramenta pedagógica. Previstos estão, na sequência, minicursos sobre jogos de movimento corporal, criatividade como fortalecedor na infância, psicologia do comportamento infantil e primeiros socorros. As quarenta horas que faltam precisam ser cumpridas ainda este semestre, porque no segundo eu devo começar outra qaulificação, bem mais pesada, como professor de Latim.     

Para poucos é novidade quanto o meu encanto com o latim, seu ensino, sua literatura, a mitologia greco-latina, tudo empalideceu bastante depois da conclusão do Doutorado. Esses efeitos e afetos tiveram pouco que ver com a Tese em si, muito mais com uma nova visão de mundo que se criou em mim ao longo destes já quase cinco anos de Alemanha. A licenciatura em Letras, Português e Latim, é, no entanto, a que mais me rende financeiramente, já que o trabalho como guardador de crianças é — lamentavelmente — menos bem pago. Assim é que vou me submeter ao absurdo da formação que me exigem: 1,5 ano de contrato em tempo integral, mas com 50% do salário correspondente. E a tal qualificação, segundo consta, não é leve. 

Minhas vontades flutuam. Até o ano passado, me aterrorizava a ideia de voltar a trabalhar com crianças, e tudo que eu queria era começar a tal qualificação como professor de Latim. No ginásio em que trabalho, atualmente como professor de Latim e de Francês, o conhecimento do que é o cotidiano de um professor escolar me cansou bastante; na escola da tarde, a convivência diária com as crianças me desestressa e funciona como um equilibrante em face do peso do trabalho letivo no ginásio. Minha maior preocupação, no momento, é como um contrato de tempo integral no estresse pode me impedir de ter um de tempo parcial para o trabalho como guardador, o que me traz, em geral, mais prazer. 

Em meio a tudo isso, havia ainda a revisão final da Tese, a preparação de um dossiê para o seguro de aposentadoria e a declaração do imposto de renda, todas essas coisas do cotidiano que causam uma pressão enorme em ruído de fundo dos meus raciocínios e reflexões diárias. Cabe o meme “queria ⭐️ morta”. Delas resta agora apenas a revisão da Tese, que eu me prometo terminar nas férias de julho a agosto. O que há agora é  a espera da resposta da agência de trabalho, de cuja autorização preciso para o contrato de trabalho da qualificação, e as decisões com relação à continuidade do trabalho como guardador à tarde, se ele será possível num contrato reduido de oito horas — além do tempo integral da qualificação.