domingo, maio 06, 2018

O que é preciso




Há duas coisas que tenho dito repetidas vezes em conversas com amigos e comigo mesmo, nos meus momentos de (tentativa de manutenção da minha) lucidez: é preciso respeitar-se e é preciso economizar energia.

As barreiras culturais e o esforço linguístico diariamente requerido me têm sido inusitados. Conhecendo a objetividade e a organização alemãs, nunca pensei que a burocracia daqui fosse ser tão grande, a ponto de me criar tantos problemas quantos tenho tido desde que cheguei. É por isso que, num dia como a sexta-feira da semana retrasada, depois de passar a quinta-feira inteira estudando e burilando a apresentação de um curto seminário, eu me jogo na cama e durmo até o sono acabar. Eu estava cansado. Na quinta-feira da semana passada, depois de ir à Seção de Estrangeiros (à famigerada Ausländerbehörde) e descobrir que haviam fechado para um curso de capacitação, com todo o estresse de estar com um visto pendente causa, fiquei mal-humorado, cansado do dreno psicológico que essas situações causam, angustiado, ansioso... depois da manhã de trabalho intenso na sexta (aula de russo seguida de aula de alemão), cheguei à casa e me examinei. Cansaço foi o que achei. Dormi uma hora. Quando me levantei, encontrei mau humor. Fui andar de bicicleta, olhar árvores e rios, tomar vento na cara. É preciso respeitar-se; às vezes não dá pra fazer nada, é preciso dar uma volta, é preciso dormir, é preciso tomar Sol. Às vezes é preciso fazer nada além do que é preciso.

Numa das primeiras vezes em que fui à universidade, com uma lista de tarefas para executar, dei conta de quatro de cinco e descobri que a quinta não era passível de solução encontrável naquele momento. Tudo muito novo, a cada palavra lida uma descoberta. Dei de cara com uma biblioteca enorme (a STUBI) e resolvi entrar e sondar como as coisas funcionavam. Queria olhar os livros, passar entre as estantes, sentir e sugar um pouco da paz que esses ambientes sempre me trouxeram. Logo na entrada, um armário para guardar pertences funciona com um código que você cria na hora. Tudo muito simples e funcional, a menos que você tenha que decifrar o texto de como fazer uso desses armários... precisei tentar umas três vezes até acertar. São coisas mínimas: o código numérico só podia ter quatro dígitos, eu demorei a entender isso. Subo. Onde estão as estantes de livros? Só vejo salas enormes e gente silenciosa trabalhando. Dei umas três voltas. Peguei minhas coisas e voltei pra casa. Simples assim. Resolver quatro das cinco coisas que estavam na minha lista tomara energia, muita energia; eu não tinha mais energia pra tentar conversar com um funcionário e perguntar sobre os livros e como ter acesso a eles. Isso me custaria uma energia que podia ser-me necessária no dia seguinte. Então eu vim-me embora, porque era preciso poupar energia.

Faz um mês e meio que estou em Hamburgo. Muita coisa mudou. Já me movimento com bastante liberdade na universidade e tenho menos problemas de expressão ou compreensão em alemão. Mas muito ainda me é completamente estranho, os choques culturais ainda são diários e os dois (auto)conselhos ainda são funcionais: é preciso respeitar-se e é preciso guardar energia.

domingo, fevereiro 25, 2018

Um sonho do ano passado







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O cenário inicial, nada novo para os meus sonhos, era a casa da minha avó. Três cômodos dela, na verdade: a cozinha, o quarto mais próximo dela (o que era do meu tio Daniel) e o banheiro. Todo sonho significativo que se passe em ambiente interno se dá na casa da minha avó, desde sempre.

Na cozinha estavam o Eduardo, uma amiga dele e eu. Em seguida, no quarto, a tal amiga, eu e mais alguém. Talvez esse mais alguém fosse WC, uma amiga minha que aparece mais tarde no sonho. No quarto, eu procurava me aproximar da amiga do Eduardo, esse moço que morava aqui perto até o mês passado e se mudou pra outro município. Eu me aproximava dela mostrando músicas e parecia tentar conquistá-la para que ela me apresentasse seu amigo ou, bem mais claramente, fizesse o Cupido entre nós dois. Houve também uma discussão no banheiro, mas já não me lembra quem participou dela ou de que se tratava.

Isso de me aproximar de amigas para chegar aos meninos por quem eu estivesse interessado foi uma constante na minha adolescência, que durou até uns vinte anos (risos constrangidos), eu diria.

No meio da noite eu havia acordado e olhado pro celular, acho que para checar as horas, e visto algumas mensagens do Eduardo, desaparecido fazia um tempo. É um moço encantador, aliás, mas com quem nunca consegui travar um bom diálogo; ele é evasivo e parece ter muita dificuldade de expressar suas emoções, o que foi me cansando e me fazendo desistir de qualquer tentativa mais robusta.


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Em seguida, eu estava a caminho de um posto de saúde em Padre Miguel, do outro lado, o lado onde fica(va?) a escola de samba. No posto, uma enfermeira me acalmou a pressa dizendo que eu seria rapidamente atendido por uma médica chamada Mitruanda (what the heck...?), no consultório 11.

Bati na porta do consultório. Atende a tal “Dra.” Mitruanda, com uma cara todo marcada de espinhas e um jaleco todo sujo de cocô.

“Ai, desculpa, eu disse que você podia vir, mas eu tou um pouco ocupada... você aguarda um instante?”

Da brecha entre o corpo volumoso dela e a porta semiaberta, vi nos fundos do consultório um box onde uma senhora bem idosa estava sendo banhada. Graças a essa visão onicapaz que a gente tem em sonhos, eu percebi que o consultório tinha uma ligação interna, por uma porta, com o consultório vizinho, talvez o número 10, mas que agora por qualquer motivo me parece que tinha um número como 28 na porta. A tal Mitruanda pediu a um médico bem bonitão que me atendesse. Ele parecia da série Grey’s Anatomy.


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O bonitão abre a porta para me chamar (ou pelo menos eu assim o cri), mas acaba por distrair-se com uma senhorinha feliz que chega pela minha esquerda e pela direita dele, acompanhada de uns dois familiares. Acho que ela estava numa cadeira de rodas. Eu me levantei do sofá dessa sala de espera que era na verdade um corredor com esse sofá que ficava de frente para as duas portas dos dois consultórios conjugados, numa atitude meio impositiva, como quem diz “pera lá que a vez é minha”.

O médico bonitão sorri e fala amistosamente com a velhinha e seus acompanhantes; parece que ela era uma ex-paciente que estava passando pelo posto, mas não para se consultar com ele. Ela era bem baixinha, da altura de uma anã, mas não com a complexão de uma. O médico bonitão pergunta como ela podia ser tão pequenina, ao que ela responde, sempre sorridente, que ela era uma estrela famosa e muito querida justamente porque era assim minúscula.

Quando achei que esse oi seria a única coisa que se interporia entre a minha espera (que tinha sido bem curta, a bem da verdade) e a minha consulta, chegam dois outros pacientes, sempre pelo corredor à minha esquerda. O bonitão atende os dois tais pacientes na minha frente, no consultório, com a porta fechada, e me azeda, ainda que ele tenha dito “só um minuto que eu já vou te atender”. Parece que um dos meninos tinha um problema no pé, parecia algum caso ortopédico.


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Depois de atender o menino, ele abre a porta do consultório, se despede e volta para dentro, fechando a porta sem me chamar. A essa altura, WC estava do meu lado. Levantamo-nos e fomos à enfermeira, reclamar o atendimento que ela havia prometido.

A enfermeira, sentada num sofá de dois lugares duma área que parecia mais externa da clínica, com cara de supercansada (acho que era o intervalo dela), tinha um objeto na mão. Parecia uma dessas bombinhas de asmático. Quando ela vai se levantar, para ajudá-la, pego a tal bombinha e vejo que se trata de um L de plástico com as duas pontas abertas, feito dum plástico azul de garrafa de água mineral; dentro, um mundo de suco de caju, que caiu todo nela quando ela se levantou. Caiu suco de caju pelo corpo todo da enfermeira, que, aliás, do lado, estava completamente nua. Depois de ir buscar papel higiênico, eu começava a limpá-la, mas ela ficava bem constrangida, porque tinha se sujado e tava com sono, meio débil, sei lá. Pois vem o cúmulo: sei lá eu por que cargas dágua, ela acha que eu estava a fim de alguma coisa e tenta me dar um beijo... Eu, como de se esperar, me esquivei; ela, sem graça, pede desculpas e me diz que o Dr. Fulano vai me atender.


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Vejo o corredor do tal consultório, e no sofá da espera está WC sentada, e ela via de repente o tal Dr. Fulano, o bonitão, sair do consultório e olhar prum lado e pro outro, como me procurando.

Pela porta que dava no corredor, entramos correndo eu e WC (sim, ela mesma que estava agora-quase agora sentada lá dentro no sofá) e, um pouco sem jeito, íamos até o tal médico, que me pediu que lhe dissesse o que tinha acontecido.

Lá vou eu na minha narrativa: fazia dois dias eu sentia uma dor que descia do lado esquerdo até a sola do pé e me impedia de andar; com isso, tinha ido a um lugar e tomado um atestado a uma médica.

Irritadamente, ele se dirige a uma médica que estava sentada num sofá e esbraveja: “Tem que cassar o CRM de uma pessoa dessas, né?” Como me pareceu que ele queria dizer a mim, indiretamente, que eu não devia ter solicitado o tal atestado, expliquei que eu realmente tinha passado por muita dor. Tendo mal e mal me ouvido, ele se levanta e entra pro consultório; eu, pê da vida, viro pra WC e digo: vamos embora. Sem nem saber se queria outro atestado ou se queria ser medicado, fato é que não parecia que eu fosse ser devidamente atendido naquela bodega.


......
Fomos embora e chegamos a um lugar em que havia um corredor entre dois prédios. Fechado por dois portões, um aqui na entrada e outro lá no final, parecia o ponto de partida de uma nova sequência de estresse. Se a minha chave funcionar... meto a chave na fechadura e, na mesma hora, abre-se o portão. Entramos WC e eu; digo-lhe que bata o portão, mas ela não o faz, sei lá eu por que motivo. Caminhamos o corredor e, no outro portão, vemos duas meninas bem amedrontadas. De fato, o tal corredor de dois portões estava num lugar  estranho e tido como perigoso de Padre Miguel. Uma delas nos pede ajuda: parece que ela não tinha a chave e estava tentando entrar ali. Abro o portão e, como WC não havia fechado o outro portão, era muito simples, bastava que ela andasse o corredor todo e, depois de passar pelo primeiro portão, o fechasse. Mas ela permanecia parada, como que esperando que eu a acompanhasse. Eu, muito gentilmente: o portão tá aberto; se você quiser, você resolve sua vida, eu tô indo embora. Everton sendo Everton.


.......
Saímos os dois, WC e eu, mas:
“Gente... eu tou com o jaleco do médico!”
“Ué... nem sei como isso aconteceu...” – diz WC.
“Problema! Ele não me atendeu, vou carregar embora o jaleco dele.”
“E o que a gente vai fazer? Vamos jogar na lixeira aqui mesmo” – diz WC, sendo boazinha. Era a lixeira do posto de saúde.
“Não, agora eu vou levar. Não sei onde eu vou descartar isso... vou descartar isso no lixo da casa da minha avó.”


........

Já na casa da minha avó, discutimos WC e eu sobre onde descartar o jaleco: se na lixeira da casa da minha avó ou se na lixeira duma lanchonete que tinha ao lado (provavelmente a do Pedro). Ponho a mão no bolso do jaleco, pois já havia notado que havia coisas ali, e encontro o receituário que o médico tinha feito para mim: cuidadosamente detalhado, mandava-me suspender a medicação que vinha tomando, Omeprazol (oiq), e me listava uma longa série de medicamentos para um tratamento cauteloso que ia durar um bom tempo. Junto, uma carteirinha de identificação tinha carimbos de frequência; cada carimbada tinha um desenho, que era uma caricatura do médico e seu nome, com um aposto que explicava que seu nome era típico de pessoas que haviam sofrido durante o nazismo... Olhando pro tal nome alemão, eu me perguntava que porra era aquilo, o significado daquela palavra. WC esclarece: “Brinquedos da guerra... não era o nome daquele programa de televisão?” WC começa então a cantarolar a música tema de abertura do tal programa... e acabou o sonho.