segunda-feira, setembro 27, 2010

Os avozinhos

Da janela

Do alto do segundo andar, numa janela de vidro que permanece fechada a maior parte do tempo, ela observa a rua. A janela dá para uma rua-avenida bastante movimentada, e eu acho pacificador ver o tempo que ela pode gastar ali, fazendo nada, vendo o movimento.

Do outro lado da rua, outra avozinha passa horas na janela. O detalhe é que essa mora no primeiro andar, e a sua janela aberta nos permite ver os móveis do seu quarto, um guarda-roupa antigo. Com o olhar menos vago que a vizinha, esta senhora olha os passantes nos olhos, porque a altura da sua janela bem o permite.

E me lembro também da avó de uma colega de adolescência: uma senhora que era tida como louca, porque passava horas na janela, olhando a rua. De sutiã.




Sol na esquina

E lá ia eu na minha busca de uma luminária. Fazia já umas duas ou três semanas que eu estava nessa empreitada. Poucos dias antes, andando com um amigo, vi uma rua onde talvez houvesse lojas, onde talvez houvesse luminárias, onde talvez eu achasse algo que me agradasse. No sábado, então, depois da natação, fui até lá.

Quando chegava à esquina da rua, perto duns jardinzinhos, vejo duas avozinhas, uma sentada, uma de pé. Ques bonitinhas! Tomando Sol de manhã! No jardinzinho da esquina! A que estava de pé levava um cachorro pela coleira. E foi ela que disse algo de que só ouvi um naco durante a minha passagem:

“Aquela filha da puta que... e aí aquela piranha... cachorra! uma filha da puta, mesmo!”

Minha sissi tem feito um esforço enorme pra tentar me fazer ver como os meus pré-conceitos podem ir ao chão. Ditto.



Da porta

Ela, parada na portaria do prédio, tem dois cachorrinhos peludos e fofos por companheiros. Olha para a rua com olhar vago, como quem espera a chegada de algo ou de alguém. Isso ali na São Mateus, pleno sábado, depois do pacote natação-velhinha desbocada-nada de luminária.

Eles? Com o seu pelinho cinza, olham na mesma direção que ela. Mas a cara deles não é de espera, é de plaquinha. Com os seguintes dizeres: “não nos pergunte; estamos aqui só de acompanhantes”.



Sonho esdrúxulo

Ia eu correndo-correndinho para o ensaio de um jogral, uma apresentação que venho preparando. Vamos apresentar o Carme Secular de Horácio, na tradução do Picot, na Semana de Estudos Clássicos. Daí que eu entro na Faculdade de Letras e vejo aquele senhor, um especialista em Horácio que eu nunca conheci, parado lá. Aparentemente, eu o conhecia, no sonho; e ele a mim. Ele tinha uma barba grande e desgrenhada, de pêlos pretinhos, apesar da sua avançada idade; usava suspensórios, uma boina e óculos fundo-de-garrafa. Nas pernas, aquelas placas de ferro de quem sofreu acidente de moto (não que o dele tenha sido um acidente de moto) e as muletas daquelas que têm um anel que fica em volta do braço e um cabinho pra segurar com a mão.

“Olá, professor! Como vai? O que faz o senhor por aqui?”, pergunto eu, seminervoso diante daquela presença tão respeitável.

“Vim assistir ao seu ensaio!”, ele me respondeu, com um sorrisinho simpático.

Gelei geral. Daí eu subi as escadas da FALE, na frente dele, meio que correndo, acho que para avisar aos alunos, antes do início do ensaio, da ilustre presença. Afe!... só faltava fazermos feio diante dele, o Prof. ... .

Portas das salas fechadas. Ai, que ódio.

Daí, sei lá por que cargas dágua, o ensaio vai ser no auditório. (Aliás, na vida real, é lá que ele tem sido sempre de sexta.) Na descida das escadas, o Prof. ... passa a minha frente, ou eu o deixo ir na frente, nem sei. Só sei que, ato contínuo, ele levou um tombo e está estatelado e estrelado no chão. Mas não tropeçou, não: caiu num escorregão e com as costas para baixo. Eu tento ajudar e só faço besteira: minha mão fica presa nos ferros da perna dele e eu já não sei o que fazer.

Acho que foi então que acordei.



Minha vovucha, eu e os velhinhos

E hoje então eu estava pensando nos velhinhos desconhecidos do mundo e no meu amor por eles, sabe? Eu me lembro do ponto em que essa história começou: com os professores da dita “antiga geração”, lá na USP. Uma gente linda e sorridente, de olhos claros e atividade intensa. Penso em dois nomes especificamente. Nada difícil de adivinhar.

E ainda agora eu acabei almoçando com o dentista mais lindo de Juiz de Fora, com quem esbarrei no restaurante; falando dos avozinhos, me dei conta de que acho que vou ao Rio de novo, no próximo feriado, só pra ver a minha vovucha. Ela tá dodói.

“Das duas últimas vezes em que eu estive lá, ela estava bem e sóbria. Daí ela ficou na cama, deitada, de onde ela quase não sai mais, e eu sentado do lado, conversando com ela por horas e horas. Quando eu era um pré-adolescente, aí pelos meus doze anos, a gente fazia o mesmo, mas de pé, na janela, vendo a chuva cair e sentindo o cheiro de terra molhada.”

“Uma bela relação”, disse o dentista mais lindo de Juiz de Fora.

É. Uma linda relação.