sábado, setembro 12, 2009

"mas, enfim, cada um vê o que quer no fugaz desenho de uma nuvem."

I

Bonito, isso, né? Li num livro.

A última semana foi de vivências novas e memórias de virtualidades passadas. Vi tanta coisa, ouvi tanta história, estive com uma das minhas inumeráveis paixões em mente. Essa é uma que nunca citei aqui. O Fotógrafo. Aliás, minto. Já falei dele outras vezes, muitas até; mas ele reclamou do seu apelido, "uma metáfora infantil". Resolvi mudá-la. Agora ele se chama O Fotógrafo.

Mas eis que eu resolvi participar de um evento aqui da Letras chamado Encontros com a Literatura. O primeiro dia de conferência veio ilustrado por dois figurões: o Prof. Doutor Gilvan Procópio Ferreira e o Guimarães Rosa. O primeiro é chefe de departamento, uma figura generosa como poucos, cuja biblioteca particular fica aqui, na salinha de Literatura Brasileira, à disposição de quem quiser e se propuser a ler. E há títulos incríveis. O segundo, o Guima, é um autor diante de cujo nome eu não devia apor o artigo -- nunca o li. Tão vexante quanto verdadeiro.

Ao longo da sua fala, o Prof. Gilvan mostrou algumas mandalas, criação artística de Arlindo Daibert Amaral, ex-professor da UFJF. O que me chamou a atenção, bem mais que os trabalhos artísticos dele, foi a sua biografia: tendo estudado Letras aqui mesmo, voltou depois para o ninho como professor de Artes. E, ao que me consta, faleceu no meio de uma fala, sobre Artes. E coseu as Letras com as Artes, em obras como Imagens do Grande Sertão .

Diante disso, impossível não pensar nO Fotógrafo.


II

Aí chegou o domingo, pé de cachimbo. No sábado eu fui ao grande xópingue daqui, o Independência. Ai, Jesus, eu e as minhas dificuldades: confundo Guimarães Rosa com Graciliano Ramos, notam?, GR - GR. Corror. E agora achei de achar que Independência se chama Liberdade. Good grief...

No domingo eu fui conhecer o tal Mascarenhas. Já tinha visto notinhas de eventos no tal lugar no jornal (eu agora leio o Tribuna de Minas aos domingos, minha gente) e tava curioso de ir conhecer o espaço. Daí fui ver a exposição fotográfica de um Daniel Sotto Maior. A primeira coisa, à esquerda, é um texto, suponho eu da curadora. Uma lástima. Depois, um quadrinho: qualquer foto 50R. Fiquei espantado. Depois as fotos. Belinhas algumas, bonitas umas cinco, lindas umas duas. E pensei nO Fotógrafo.

Aí saí da exposição e fui conversar com a recepcionista, uma senhorinha chamada Raquel que é um poço de simpatia. É que o lugar é lindo... um curso de Mitologia ali seria um sonho. Mas agora já tou pensando num de teatro romano: tem dois grupos de teatro lá aos sábados, acho que colava mais. Enfim, voltando à Raquel, ela me mostra uma coisa e outra, e vamos parar na sala de Fotografia. Um espaço bem legal, com uns quatro ambientes e umas duas máquinas com cara de caras que logo, logo se perdem. O moço que seria responsável por ministrar aulas de Fotografia na cidade brigou com o prefeito, foi-se, evadiu-se, nunca mais se viu. Lúcio Sérgio Catilina. Humpf.

Ah, é. Aí eu pensei, de novo, nO Fotógrafo.


III


Daí veio o sábado 5. Nos tais encontros, era dia de Agualusa, um autor que eu desconhecia. Africano. Parece que anda morando no Rio faz um tempim.


O livro, O vendedor de passados, é interessante, tem uma lagartixa de narrador e umas cenas, histórias e parágrafos muito loucos. No meio disso tudo, três das quatro personagens principais são fotógrafos. A única personagem feminina, Ângela Lúcia, diz "Nem sequer sei se sou fotógrafa. Eu colecciono luz.", bem na página 55. Nada criativo que ela se chame Lúcia, talvez, mas é curioso que ela seja introduzida em cena em compração com uma prostituta, de quem a lagartixa, antes humana, foi apaixonada. E a prostituta se chamava Alba. Tanto pela luz da foto.


Mas, enfim, se foto é a escrita da luz, falemos da escrita. Aliás, quero falar da escrita da imagem. Que foto é imagem. Já que resolvi falar de fotos... Pois o livro é bem imagético. Além do trechinho que deu mote a esta postagem (que está na página 80 do livro), há os sonhos. A lagartixa (ou osga, como se chama no livro) tem sonhos de que se eiva o livro. Esses sonhos são narrados, e vira e mexe a lagartixa se revê humana nessas visões oníricas. E duas vezes se metalinguageia sobre sonhos.


(1) Na página 76, "--Deus deu-nos os sonhos para que possamos espreitar o outro lado --, disse Ângela Lúcia: -- Para conversarmos com os nossos mais-velhos. Para conversarmos com Deus. Eventualmente, com osgas."


(2) E na página 102, fala da mãe da osga... rs: "-- A realidade é dolorosa e imperfeita --, dizia-me: -- é essa a sua natureza e por isso a distinguimos dos sonhos."


E duas outras cenas me chamaram a atenção, e eu fiz questão de fazer correr o lápis:

(1) Na página 102: "Imaginem um rapaz correndo de moto numa estrada secundária. O vento bate-lhe no rosto. O rapaz fecha os olhos e abre os braços, como nos filmes, sentindo-se vivo e em plena comunhão com o universo. Não vê o caminhão irromper do cruzamento. Morre feliz. A felicidade é quase sempre uma irresponsabilidade. Somos felizes durante os breves instantes em que fechamos os olhos."


Isso me lembra algo que dizia (ou diz, que sais-je...) O Sonho.


(2) Na página 153: "A memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento. Vemos crescer por sobre as acácias a luz da madrugada, as aves debicando a manhã, como a um fruto. Vemos, além, um rio sereno e o arvoredo que o abraça. Vemos o gado pastando lento, um casal que corre de mãos dadas, meninos dançando o futebol, a bola brilhando ao sol (um outro sol). Vemos os lagos plácidos onde nadam os patos, os rios de águas pesadas onde os elefantes matam a sede. São coisas que ocorrem diante dos nossos olhos, sabemos que são reais, mas estão longe, não as podemos tocar. Algumas estão já tão longe, e o comboio avança tão veloz, que não temos a certeza de que realmente aconteceram. Talvez as tenhamos sonhado. Já me falha a memória, dizemos, e foi apenas o céu que escureceu."


E um último trecho, que me fez, ele também, pensar nO Fotógrafo, está na página 145:


"Existem pessoas que revelam, desde muito cedo, um enorme talento para a desventura. A infelicidade atinge-os como uma pedrada, dia sim, dia não, e eles recebem-na com um suspiro conformado. Outras há, pelo contrário, com uma estranha propensão para a felicidade. Estas são atraídas pelo azul, aquelas pela embriaguez dos abismos. Há pessoas destinadas a sonhar (algumas são bem pagas para isso); há pessoas nascidas para trabalhar, práticas e concretas e incansáveis, e há pessoas com jeito de rio, que vão da nascente à foz sem quase nunca abandonarem o leito."

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