Ganexa, o removedor de obstáculos
As
novelas mexicanas, que são quase uma tradição no Brasil, com aqueles
dramalhões, interpretações exageradas e enredos com reviravoltas absurdas nunca
fizeram mais parte do meu cotidiano que numa ou noutra referência que tenha
virado moda (o que hoje eu chamaria de meme) na minha adolescência (mas eu
obviamente sei quem é Talia, com muita honra). Há pouco tempo, vi pelo Netflix
um seriado chamado Jane, a virgem, que eu descreveria como uma leitura
americanizada dessas telenovelas. Foi muito divertido e enriquecedora a
experiência. Uma coisa que ficou bem marcada pra mim foi quando comentaram da
tendência dessas novelas de apresentar eventos em cenários exóticos que acabam
sendo representados por uma tela pintada ou uma montagem bastante, digamos,
pouco convincente. Tudo isso compõe uma breguíssima estética do absurdo e do
exagero que, sinceramente, não me cria nenhuma aversão. A prova:
Acho
que por volta de agosto, o meu fascínio com odissi e com a mitologia indiana me
fizeram descobrir Vighnaharta Ganesha, um seriado (novela?) que parece
estar todo disponível no YouTube. É difícil definir, porque a atuação é
exagerada e os cenários são montagens digitais nada críveis, numa (pros meus
olhos) quase reprodução da breguíssima estética do absurdo e do exagero das
telenovelas mexicanas; o enredo progride lentamente (o nascimento do próprio
Ganexa leva uns cinco episódios), o que me faz pensar em algo como as séries
coreanas que já vi ou uma e outra cena dOs Cavaleiros do Zodíaco com que
esbarrei; vi que o seriado já está pelo milésimo episódio e já está na
programação da Sony India desde 2017, muito parecido com o que acontece com as
séries norte-americanas e suas temporadas.
Vi
todo o primeiro episódio extasiado, achando tudo muito diferente e fofo e feio.
E lindo. Quando começou o segundo episódio, no automático do YouTube, as
legendas desapareceram. O seriado-telenovela é em híndi, e o primeiro episódio
tinha legendas (ruins, mas bastantes) em inglês, geradas por CC. Vi o segundo
episódio com tremenda frustração; fiz, depois, algo que nunca faço: deixei um
comentário em que perguntava se alguém sabia me explicar como “se ligavam” as
legendas, porque eu não sabia o que tinha acontecido com o botão CC e estava
muito frustrado de não poder ver a sequência. Esse foi o primeiro capítulo
desta minha telenovela. Também li alguns dos comentários. Particularmente
marcantes foram: (1) alguns que faziam uma prece a Ganexa, para que o deus removesse
esse obstáculo e fizesse aparecer as legendas, amém; (2) de alguns (que suponho
fossem norte-americanos) soltando as cachorras porque o seriado não tinha legendas
em inglês, como se supunha que eles vissem isso, é o fim da picada, eu exijo,
etc.; (3) uma brasileira que pedia, encarecidamente, que pusessem legendas em
português do Brasil (seu pedido estava, obviamente, redigido em PB).
No
final de outubro aconteceu a India Week de Hamburgo, um evento que reúne
programação cultural e comercial e que é, pra mim, uma fonte rica de listas e
mais listas de coisas pra ver e visitar e ouvir e vivenciar durante uma semana
inteira. Ano passado participei de exposições fotográficas e de quadros,
palestras com fotógrafo e professor de híndi, apresentações de dança e de
agências de turismo, passeio por lojas e templos que a comunidade indiana
frequenta por aqui. Por essa época, num dos momentos em que estive procurando
alguma informação pela rede, descobri que meus comentários tinham recebido uma
resposta. Fui empolgado checar, crente que encontraria uma solução pro mistério
das legendas desaparecidas. A pessoa tinha mandado dois comentários que se
resumiam a “não tem legenda, aceita que dói menos”. Achei desnecessário e foi
útil. Por uns cinco minutos. Li outros comentários e, entre eles, o de alguém
que sugeria que no aplicativo da Sony as legendas apareciam normalmente. Baixei
o aplicativo, testei, nada. Pensei que talvez no canal, no site. Achei, era
pago, paguei um mês de teste, nada. Na verdade, não nada: há cinco
possibilidades de dublagem, todas de línguas da Índia, eu não conseguia nem ler
que língua que era com o alfabeto “local” – inglês, que era bom, nada. E esse
foi o segundo capítulo desta minha telenovela.
Fui
vendo os episódios mesmo sem legenda, agora pelo canal da Sony nanétchi. Alguns
episódios passavam sem maiores dramas, outros com um pouco mais, como o de
depois do nascimento de Ganexa, quando as deusas todas vão ao palácio em que
mora Párvati e, na minha compreensão, oferecem dons ao menino em coisas que
dizem. E eu não sabia nada do que estavam oferecendo, porque falavam, falavam,
falavam, e eu não entendia nada. Comentei com um amigo que curte ioga e tals
sobre o seriado-telenovela e o meu drama, ele se interessou e pensou que talvez
conseguisse achar alguma coisa em canais que não me estavam acessíveis. Quando
fui atrás do link do primeiro episódio para ele, acabei vendo o episódio
em que estava (o oitavo, nono, por aí) de novo pelo YouTube. E tinha legendas.
Felicidade geral na nação. Continuei por lá, o seguinte também tinha legenda.
Felicidade e soberba na nação. No seguinte do seguinte, nada de legenda.
Eu
me esqueci de comentar que era um domingo. Um amigo meu daqui diz que domingo é
o dia em que a gente encomenda coisas que não deve, bebe sem barreiras e come
tudo que a dieta proíbe, porque é tempo demais nas mãos pra gente não acabar se
corrompendo no ócio. Na família de que venho, evangélica ortodoxa (se é que
isso existe), diz-se que “mente desocupada é oficina do diabo”. Pois algum asura
atacou de fato e mexeu com meu brio. Aí pela meia-noite, me começa um episódio
meio chave, já nem lembro qual era o momento da narrativa, e as legendas
desaparecem de novo. A raiva tomou conta do meu ser, e a indignação soprou no
meu ouvido que era um absurdo eu falar cinco línguas e não poder ver uma série,
porque não entendi o que os atores diziam. Aí eu disse: vou aprender híndi. E
esse foi o primeiro capítulo de uma nova telenovela.
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