domingo, janeiro 09, 2022

 

Ganexa, o removedor de obstáculos



As novelas mexicanas, que são quase uma tradição no Brasil, com aqueles dramalhões, interpretações exageradas e enredos com reviravoltas absurdas nunca fizeram mais parte do meu cotidiano que numa ou noutra referência que tenha virado moda (o que hoje eu chamaria de meme) na minha adolescência (mas eu obviamente sei quem é Talia, com muita honra). Há pouco tempo, vi pelo Netflix um seriado chamado Jane, a virgem, que eu descreveria como uma leitura americanizada dessas telenovelas. Foi muito divertido e enriquecedora a experiência. Uma coisa que ficou bem marcada pra mim foi quando comentaram da tendência dessas novelas de apresentar eventos em cenários exóticos que acabam sendo representados por uma tela pintada ou uma montagem bastante, digamos, pouco convincente. Tudo isso compõe uma breguíssima estética do absurdo e do exagero que, sinceramente, não me cria nenhuma aversão. A prova:


Acho que por volta de agosto, o meu fascínio com odissi e com a mitologia indiana me fizeram descobrir Vighnaharta Ganesha, um seriado (novela?) que parece estar todo disponível no YouTube. É difícil definir, porque a atuação é exagerada e os cenários são montagens digitais nada críveis, numa (pros meus olhos) quase reprodução da breguíssima estética do absurdo e do exagero das telenovelas mexicanas; o enredo progride lentamente (o nascimento do próprio Ganexa leva uns cinco episódios), o que me faz pensar em algo como as séries coreanas que já vi ou uma e outra cena dOs Cavaleiros do Zodíaco com que esbarrei; vi que o seriado já está pelo milésimo episódio e já está na programação da Sony India desde 2017, muito parecido com o que acontece com as séries norte-americanas e suas temporadas.

Vi todo o primeiro episódio extasiado, achando tudo muito diferente e fofo e feio. E lindo. Quando começou o segundo episódio, no automático do YouTube, as legendas desapareceram. O seriado-telenovela é em híndi, e o primeiro episódio tinha legendas (ruins, mas bastantes) em inglês, geradas por CC. Vi o segundo episódio com tremenda frustração; fiz, depois, algo que nunca faço: deixei um comentário em que perguntava se alguém sabia me explicar como “se ligavam” as legendas, porque eu não sabia o que tinha acontecido com o botão CC e estava muito frustrado de não poder ver a sequência. Esse foi o primeiro capítulo desta minha telenovela. Também li alguns dos comentários. Particularmente marcantes foram: (1) alguns que faziam uma prece a Ganexa, para que o deus removesse esse obstáculo e fizesse aparecer as legendas, amém; (2) de alguns (que suponho fossem norte-americanos) soltando as cachorras porque o seriado não tinha legendas em inglês, como se supunha que eles vissem isso, é o fim da picada, eu exijo, etc.; (3) uma brasileira que pedia, encarecidamente, que pusessem legendas em português do Brasil (seu pedido estava, obviamente, redigido em PB).  

No final de outubro aconteceu a India Week de Hamburgo, um evento que reúne programação cultural e comercial e que é, pra mim, uma fonte rica de listas e mais listas de coisas pra ver e visitar e ouvir e vivenciar durante uma semana inteira. Ano passado participei de exposições fotográficas e de quadros, palestras com fotógrafo e professor de híndi, apresentações de dança e de agências de turismo, passeio por lojas e templos que a comunidade indiana frequenta por aqui. Por essa época, num dos momentos em que estive procurando alguma informação pela rede, descobri que meus comentários tinham recebido uma resposta. Fui empolgado checar, crente que encontraria uma solução pro mistério das legendas desaparecidas. A pessoa tinha mandado dois comentários que se resumiam a “não tem legenda, aceita que dói menos”. Achei desnecessário e foi útil. Por uns cinco minutos. Li outros comentários e, entre eles, o de alguém que sugeria que no aplicativo da Sony as legendas apareciam normalmente. Baixei o aplicativo, testei, nada. Pensei que talvez no canal, no site. Achei, era pago, paguei um mês de teste, nada. Na verdade, não nada: há cinco possibilidades de dublagem, todas de línguas da Índia, eu não conseguia nem ler que língua que era com o alfabeto “local” – inglês, que era bom, nada. E esse foi o segundo capítulo desta minha telenovela.

Fui vendo os episódios mesmo sem legenda, agora pelo canal da Sony nanétchi. Alguns episódios passavam sem maiores dramas, outros com um pouco mais, como o de depois do nascimento de Ganexa, quando as deusas todas vão ao palácio em que mora Párvati e, na minha compreensão, oferecem dons ao menino em coisas que dizem. E eu não sabia nada do que estavam oferecendo, porque falavam, falavam, falavam, e eu não entendia nada. Comentei com um amigo que curte ioga e tals sobre o seriado-telenovela e o meu drama, ele se interessou e pensou que talvez conseguisse achar alguma coisa em canais que não me estavam acessíveis. Quando fui atrás do link do primeiro episódio para ele, acabei vendo o episódio em que estava (o oitavo, nono, por aí) de novo pelo YouTube. E tinha legendas. Felicidade geral na nação. Continuei por lá, o seguinte também tinha legenda. Felicidade e soberba na nação. No seguinte do seguinte, nada de legenda.

Eu me esqueci de comentar que era um domingo. Um amigo meu daqui diz que domingo é o dia em que a gente encomenda coisas que não deve, bebe sem barreiras e come tudo que a dieta proíbe, porque é tempo demais nas mãos pra gente não acabar se corrompendo no ócio. Na família de que venho, evangélica ortodoxa (se é que isso existe), diz-se que “mente desocupada é oficina do diabo”. Pois algum asura atacou de fato e mexeu com meu brio. Aí pela meia-noite, me começa um episódio meio chave, já nem lembro qual era o momento da narrativa, e as legendas desaparecem de novo. A raiva tomou conta do meu ser, e a indignação soprou no meu ouvido que era um absurdo eu falar cinco línguas e não poder ver uma série, porque não entendi o que os atores diziam. Aí eu disse: vou aprender híndi. E esse foi o primeiro capítulo de uma nova telenovela.           

Nenhum comentário: