sábado, março 22, 2014

Alegreto triunfante



Aquela mala à esquerda é um suplício áulico. Imaginar as roupas que se poderiam ter posto ali, imaginar as viagens que poderiam ter sido feitas, tudo isso é supliciante. O guarda-roupa guarda peças que não cheguei a ver, é fato certo; vi o que havia para ver no cotidiano, duas ou três bermudas, uma ou duas camisetas, uma ou duas camisas, duas calças; vi um par de xortes pretos, desses molinhos de prática de esportes, que me trazem hoje a memória da tua timidez e da minha. Na cadeira lá do canto eu me lembro da minha primeira noite aí, da minha mochila xadrez, dos meus remédios, que tu quase sempre insistias para que eu tomasse mais cedo, antes da hora.

“Vem pra cama” – tu me dizias.

Na janela, as toalhas penduradas, que eu cria bem presas com os pregadores, fechavam-nos do mundo lá fora do teu quarto. Por entre as grades, que eu cria que nos protegiam na solidez de um ambiente que construíamos, ninguém poderia entrar e atrapalhar aquele sono. Aquele sonho. Aquele sonho que eu velava com cuidado, com cafunés e contemplações, como no dia em que tua irmã bateu insistentemente à porta, preocupada porque havia dias não te via. Não sei mais o que fazer com esse menino, me disse ela, com olhos amorosos que me pediam que te inculcasse juízo. Mas como? As drogas parecem ter sido o único meio que tu encontraste de lidar com tua cabeça confusa. Confusa como era a minha na tua idade, confusa como confusos eram os meus sentimentos na tua idade – como são os teus agora.

Na frente da janela, quase a bloqueá-la, tua escrivaninha. Lá havia prescrições e livros. Muitas prescrições, poucos livros, e inúteis, um computador e um par de óculos. Houve ali também fotos, memória de uma infância a que eu não estive presente, sorridente no quintal e no sofá de uma família que me acolheu. Foi a primeira vez que uma família me acolheu.

A cadeira de rodinhas segurava o ventilador e tu dormias sob aquele vento forte. Parecia que tu punhas a cabeça bem sob ele para que ele ventaneasse com força pra fora a confusão que nela reinava, pois era sempre assim que te deitavas, com a cabeça aerada, antes pelo vento só, depois também pelas drogas. E o ronco quase imediato, às vezes mais forte, em geral estavelmente indistinto, que se seguia ao teu fechar de olhos, ele era talvez o ruído que faziam os pensamentos que tu punhas pra fora à força de vento e medicamentos. Eu não sei. Sei que tu falavas enquanto dormias, tu falavas e eu cria que dialogavas, me esforçava por compreender, mas tu nunca quiseste me dizer nada. Havia também os gases, às vezes ruidosos, às vezes estrondosos, às vezes silenciosamente fétidos... mas deles eu nunca tentei compreender o sentido, porque julgava que saíam de ti sem teu controle, sem tua vontade – e eu nunca fui médico. Eu era apenas enamorado.

E do colchão pequeno, de solteiro, que se sobrepunha à cama grande, de casal, eu te velava o sono. Eu te velava a vida. Houve momentos em que tu subiste a este colchão e fizeste o que fazias sempre que eu me deitava: me puxaste pra junto de ti com teus braços grandes e me puseste entre parênteses no teu corpo na posição fetal que era a tua, para me assemelhares a ti, para declarar ao mundo (mas só ali no quarto, na cama, em segredo) que eu era teu. Mas isso foi em curtos momentos de uma curta convivência.     

Mas a porta do quarto se fechou. Tu a fechaste sem o meu aval, sem a minha presença. E se me fecharam com ela a cozinha onde comemos a tua alegria roxa, a sala onde incomodamos a tua mãe com nossa união tão alegre e frágil, o banheiro onde tu fazias a tua higiene obsessiva que molhava todo o chão, a cama da tua irmã onde dormimos agarrados embaixo do ar frio.


Restam-me as memórias. Depois da vilania do pirata, que partiu por causa do chamado dos mares e nunca voltou o mesmo, houve tu, que partes com tuas drogas, com tuas traições e autotraições; tu, leonino, fera ressabiada com um reino que era teu... de que trancaste a porta impiedosamente. 


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