Aquela mala à esquerda é um
suplício áulico. Imaginar as roupas que se poderiam ter posto ali, imaginar as
viagens que poderiam ter sido feitas, tudo isso é supliciante. O guarda-roupa
guarda peças que não cheguei a ver, é fato certo; vi o que havia para ver no
cotidiano, duas ou três bermudas, uma ou duas camisetas, uma ou duas camisas,
duas calças; vi um par de xortes pretos, desses molinhos de prática de
esportes, que me trazem hoje a memória da tua timidez e da minha. Na cadeira lá
do canto eu me lembro da minha primeira noite aí, da minha mochila xadrez, dos
meus remédios, que tu quase sempre insistias para que eu tomasse mais cedo,
antes da hora.
“Vem pra cama” – tu me dizias.
Na janela, as toalhas penduradas,
que eu cria bem presas com os pregadores, fechavam-nos do mundo lá fora do teu
quarto. Por entre as grades, que eu cria que nos protegiam na solidez de um
ambiente que construíamos, ninguém poderia entrar e atrapalhar aquele sono.
Aquele sonho. Aquele sonho que eu velava com cuidado, com cafunés e
contemplações, como no dia em que tua irmã bateu insistentemente à porta,
preocupada porque havia dias não te via. Não sei mais o que fazer com esse
menino, me disse ela, com olhos amorosos que me pediam que te inculcasse juízo.
Mas como? As drogas parecem ter sido o único meio que tu encontraste de lidar
com tua cabeça confusa. Confusa como era a minha na tua idade, confusa como
confusos eram os meus sentimentos na tua idade – como são os teus agora.
Na frente da janela, quase a
bloqueá-la, tua escrivaninha. Lá havia prescrições e livros. Muitas prescrições,
poucos livros, e inúteis, um computador e um par de óculos. Houve ali também
fotos, memória de uma infância a que eu não estive presente, sorridente no
quintal e no sofá de uma família que me acolheu. Foi a primeira vez que uma
família me acolheu.
A cadeira de rodinhas segurava o
ventilador e tu dormias sob aquele vento forte. Parecia que tu punhas a cabeça
bem sob ele para que ele ventaneasse com força pra fora a confusão que nela
reinava, pois era sempre assim que te deitavas, com a cabeça aerada, antes pelo
vento só, depois também pelas drogas. E o ronco quase imediato, às vezes mais
forte, em geral estavelmente indistinto, que se seguia ao teu fechar de olhos,
ele era talvez o ruído que faziam os pensamentos que tu punhas pra fora à força
de vento e medicamentos. Eu não sei. Sei que tu falavas enquanto dormias, tu
falavas e eu cria que dialogavas, me esforçava por compreender, mas tu nunca
quiseste me dizer nada. Havia também os gases, às vezes ruidosos, às vezes
estrondosos, às vezes silenciosamente fétidos... mas deles eu nunca tentei
compreender o sentido, porque julgava que saíam de ti sem teu controle, sem tua
vontade – e eu nunca fui médico. Eu era apenas enamorado.
E do colchão pequeno, de
solteiro, que se sobrepunha à cama grande, de casal, eu te velava o sono. Eu te
velava a vida. Houve momentos em que tu subiste a este colchão e fizeste o que
fazias sempre que eu me deitava: me puxaste pra junto de ti com teus braços
grandes e me puseste entre parênteses no teu corpo na posição fetal que era a
tua, para me assemelhares a ti, para declarar ao mundo (mas só ali no quarto,
na cama, em segredo) que eu era teu. Mas isso foi em curtos momentos de uma
curta convivência.
Mas a porta do quarto se fechou.
Tu a fechaste sem o meu aval, sem a minha presença. E se me fecharam com ela a
cozinha onde comemos a tua alegria roxa, a sala onde incomodamos a tua mãe com
nossa união tão alegre e frágil, o banheiro onde tu fazias a tua higiene
obsessiva que molhava todo o chão, a cama da tua irmã onde dormimos agarrados
embaixo do ar frio.
Restam-me as memórias. Depois da
vilania do pirata, que partiu por causa do chamado dos mares e nunca voltou o mesmo,
houve tu, que partes com tuas drogas, com tuas traições e autotraições; tu,
leonino, fera ressabiada com um reino que era teu... de que trancaste a porta
impiedosamente.