O que ela me contou
O que ela me contou foi que nunca houve uma obrigação ou uma direção religiosa em sua casa. Nunca tinha sido levada com tom de "assim é que se faz" pra uma igreja ou para um terreiro. Mas sua mãe frequentava um terreiro de umbanda que ficava na vizinha, na vizinha mesma de muro contíguo. Dessa primeira história que ela me contou, guardei o seguinte: "Eu até via minha mãe dançar no terreiro". Pelo que entendi, sua mãe era mesmo adepta da religião, chegava mesmo a incorporar e participava ativamente das práticas. Achei interessante essa visão de olhar de criança, que apreendia provavelmente pouco menos que uma dança nos ritos todos.
Alguns anos depois, uma sua irmã mais velha teve um quadro diagnosticado como epilepsia. Em busca de respostas e refocilamento na situação, a família consultou um babalorixá da umbanda, o qual as redirecionou para o candomblé. Lá a irmã foi tratada e iniciada, fez o santo. Não acompanhei ao certo o que isso fez com os ataques de epilepsia, mas dessa segunda história que ela me contou, guardei o seguinte: "A manifestação religiosa mais linda que já vi na vida foi a minha irmã dançando no centro do terreiro, com a indumentária de Oxum, velada com as contas e levando o espelho, enquanto todos pareciam lhe prestar homenagem". Achei linda esse olhar amoroso de uma criança com seus doze anos, que apreendia apenas a beleza nos ritos todos.
Alguns anos depois, usando-se da ideia de dois de seus irmãos mais velhos, que se haviam por livre e espontânea vontade inscrito para um curso de catequese numa igreja católica, foi ela acompanhada de uma amiga para o mesmo curso, onde se educou daqueles ensinos por curiosidade sua. Imagino que esses ensinos lhe tenham servido de porta de entrada para as visitas que passou a fazer à igreja católica, muitos anos mais tarde, acompanhada de seu companheiro, quando viviam o luto de uma perda imensa. Contou-me que os encontros de casais foram um oásis no meio da dor, e as visitas se intensificaram e mantiveram por um longo período de meses.
De todas essas lindas histórias que ela me contou, guardei no meu coração a serenidade que sempre ouvi em sua voz e os olhares brilhantes com algumas dessas lembranças. E a sensação de que deve ter sido maravilhoso poder olhar para todas essas manifestações do sagrado e da fé com olhos imediatos, sem que ninguém lhe forçasse uma visão de mundo ou uma verdade que despreza todas as outras como coisa maligna. Amo cada vez mais a leveza.
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