sábado, agosto 24, 2024


O que ela me contou 


O que ela me contou foi que nunca houve uma obrigação ou uma direção religiosa em sua casa. Nunca tinha sido levada com tom de "assim é que se faz" pra uma igreja ou para um terreiro. Mas sua mãe frequentava um terreiro de umbanda que ficava na vizinha, na vizinha mesma de muro contíguo. Dessa primeira história que ela me contou, guardei o seguinte: "Eu até via minha mãe dançar no terreiro". Pelo que entendi, sua mãe era mesmo adepta da religião, chegava mesmo a incorporar e participava ativamente das práticas. Achei interessante essa visão de olhar de criança, que apreendia provavelmente pouco menos que uma dança nos ritos todos.

Alguns anos depois, uma sua irmã mais velha teve um quadro diagnosticado como epilepsia. Em busca de respostas e refocilamento na situação, a família consultou um babalorixá da umbanda, o qual as redirecionou para o candomblé. Lá a irmã foi tratada e iniciada, fez o santo. Não acompanhei ao certo o que isso fez com os ataques de epilepsia, mas dessa segunda história que ela me contou, guardei o seguinte: "A manifestação religiosa mais linda que já vi na vida foi a minha irmã dançando no centro do terreiro, com a indumentária de Oxum, velada com as contas e levando o espelho, enquanto todos pareciam lhe prestar homenagem". Achei linda esse olhar amoroso de uma criança com seus doze anos, que apreendia apenas a beleza nos ritos todos.

Alguns anos depois, usando-se da ideia de dois de seus irmãos mais velhos, que se haviam por livre e espontânea vontade inscrito para um curso de catequese numa igreja católica, foi ela acompanhada de uma amiga para o mesmo curso, onde se educou daqueles ensinos por curiosidade sua. Imagino que esses ensinos lhe tenham servido de porta de entrada para as visitas que passou a fazer à igreja católica, muitos anos mais tarde, acompanhada de seu companheiro, quando viviam o luto de uma perda imensa. Contou-me que os encontros de casais foram um oásis no meio da dor, e as visitas se intensificaram e mantiveram por um longo período de meses.

De todas essas lindas histórias que ela me contou, guardei no meu coração a serenidade que sempre ouvi em sua voz e os olhares brilhantes com algumas dessas lembranças. E a sensação de que deve ter sido maravilhoso poder olhar para todas essas manifestações do sagrado e da fé com olhos imediatos, sem que ninguém lhe forçasse uma visão de mundo ou uma verdade que despreza todas as outras como coisa maligna. Amo cada vez mais a leveza.  

segunda-feira, agosto 19, 2024


Andrew Scott, Tio Vânia, Pentesileia


Estou apaixonado pelo Andrew Scott. Essa forma totalmente latina de me expressar me parece fazer total sentido. Depois de vê-lo no (por mim) muito esperado All of us strangers, um filme lindo com um final pavoroso, e me impressionar muitíssimo com a expressividade dos seus olhos pretos, me dei conta de que já o conhecia de Fleabag, uma minissérie em que ele faz um padre na segunda temporada. Uma minissérie muito boa, diga-se de passagem, cuja segunda temporada é um encanto de delicada e profunda. 

Hoje foi a vez da adaptação de Chekhov, Vanya, em que ele interpreta todas as sete personagens sozinho no palco. Lindíssima atuação, cheia de nuances e momentos de extrema emoção e comoção, mesmo, as expectativas criadas pelos muitos elogios e resenhas positivas não se frustraram. Um milagre.

Poucas vezes me vi tão envolvido com uma peça de teatro a ponto de lê-la e a alguns comentários críticos como preparação. A última vez que me lembro de ter feito algo parecido foi quando revi, há três anos, a adaptação que o Peter Brooks fez do Mahabharata, algo que comentei aqui. Também me lembro de ter lido uma peça do Plínio Marcos, talvez Navalha na carne, sei lá eu, mas meramente porque ia vê-la no teatro e, como acho suas peças pouco palatáveis, preferi ler o enredo antes, pra não passar mal durante o espetáculo.  

Enfim, feliz de ter me colocado nesta aventura, que ainda tem prevista uma leitura (a introdução de Elizaveta Fen à tradução em que li Tio Vânia) e outra adaptação teatral filmada (a de Conor McPherson) num DVD que comprei para poder ver. A que extremos me leva minha empolgação lunática, nihil noui sub sole. Ainda achei três filmes que mencionam a peça de alguma forma numa plataforma cultinha de que tenho assinatura. 

Espero que a empolgação se mantenha e que a frustração não se imponha na semana que vem, em Berlim, quando vir Penthesilea: Ein Requiem, direção de Nino Haratischwili. Espero mesmo, daí quem sabe me empolgo pra ler o livro premiado dela. Ou o outro, o quase premiado. 

23/3/2024