Uma coisa muito útil que aprendi nos últimos tempos foi retirar-me. Ao lado da aprendizagem de dar tempo ao tempo, acho que tenho conseguido chegar menos a confrontações — que sempre foram, de minha parte, cheias de violência de toda a sorte — e evitar desgastes emocionais maiores do que os já presenteados pelo cotidiano.
Hoje eu estava bem tranquilinho, depois de uma noite bem dormida, no primeiro metrô em direção ao emprego da tarde. À tarde eu trabalho como “guardador de crianças” (ou “educador”, se eu quisesse me dar uma tradução pomposa pra uma atividade que tem pouco de soberba em si mesma). Estou há pouco menos que três meses bem feliz na pré-escola, com crianças de cinco a seis anos. Trabalho numa escola muito cosmopolita, descubro a cada dia um país novo no mapa, converso em português, alemão e (no meu pseudo) russo com crianças de toda origem; descubro no meio de roupas, mochilas, calçados e brinquedos caros as mesmas necessidades de atenção, proteção, carinho e limites e regras claras de que todo miúdo precisa. Ainda que hoje seja um dia diferente, pois vou ser retirado da minha zona de conforto da pré-escola e colocado num grupo misto e desordenado (“colônia de férias”), eu estava tranquilinho.
Daí, logo na minha segunda estação dentro do metrô, entra-me uma senhora e me solta um можно?, porque eu estava com a mochila no assento do lado do meu. Tirando o que eu percebi como russo, nada de estranho na situação. Ela se sentou à minha direita, sua mãe diante de nós dois, ocupando dois bancos; em um dos bancos no conjunto de quatro à nossa direita, pra lá do corredor, sua filha se sentou, claramente no desejo de ficar afastada de mãe e avó. Em seguida, começa uma discussão em tom bastante alto para o que é a normalidade dentro de um metrô por estas bandas. Conhecendo o incômodo que qualquer alteração acústica me causa, já me pus no meu constante estado de autopoliciamento. Aí veio o mais absurdo de toda a situação: com a máscara cobrindo somente a boca, num tom bruto e autoritário, a mãe pergunta à filha onde foi parar a máscara dela. No volume alto, movimento de tampa nariz e destampa nariz e boca que se seguiram, meu incômodo foi só aumentando, exponenciado por notar que a senhora fungava o tempo todo e estava com o nariz bem entupido.
Eu comecei a observar o outro extremo do compartimento, já que minha reação passivo-agressiva de olhar feio pra senhorinha a cada vez que ela baixava a máscara estava tendo efeito zero. Assim que se desocupou um assento, fui pra bem longe.
Pra bem longe eu fui também no refeitório da escola em que trabalho à tarde. Há um sistema bem planejado de separarem-se as crianças de cada turma de acordo com o horário em que elas são buscadas a cada dia. Uma mãe errou no horário e resolveu que queria levar o filho embora no horário do almoço, por volta das 13h, quando o menino estava registrado para sair às 14h30. A educadora que estava ali perto explicou (umas três vezes, repetindo-se, como quase sempre é necessário com os pais) que ela poderia levar o menino antes de ele comer ou somente daí a uma hora e meia, no próximo horário de saída. Só que o almoço do dia era bom, e o menino não queria ir sem almoçar. Minha empatia pela situação da mãe, o desejo do menino e a impotência da educadora me fizeram querer tentar resolver o problema. Felizmente, eu me dei conta da minha presunção antes, no mesmo momento em que caiu a evidente ficha de que eu não estava envolvido no imbróglio e só precisava mesmo era sair de perto dos três.
Como nas situações, também nas relações. Há pelo menos sete anos venho trabalhando nisso: fugir de pessoas que fizeram escolhas de vida muito diferentes da minha, escolhas que me parecem cercadas de ódio e violência, ainda que isso não se perceba no cotidiano da/pela pessoa em questão. A comunicação se dificulta, as duas artes não conseguem se ouvir, eu acabo entrando no meu modo “melhor nem dizer nada” e me afasto. Da mesma forma, respeito quem age de forma parecida. Amigos, queridos, parentes ou conhecidos que se afastam — afastados permanecerão. A interrelação precisa sempre ser uma via de duas mãos; se se desfaz, é possível que seja livramento.
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