terça-feira, dezembro 05, 2023

 

Mas a gente vai, aos poucos, 
alcançando aquilo que a gente precisa alcançar, né?


Ouvi dia desses uma menina jovem, de voz animada, a qual criou um podcast de sucesso e, depois de várias idas e vindas, chegou até mesmo a ser patrocinada pelo Obama. Ela, Misha Eucep, deu entrevista no lindo This being human. No meio da sua fala, precisei anotar uma citação que eu achei maravilhosa: "Eu quero criar e existir num lugar de entrega (surrender)". Entrega ou rendição, uma palavra, um conceito, que ela vai unindo a outros: abandono, abundância, o oposto de um lugar de resistência. Isso faz todo o sentido para mim. Eu quero estar e existir num lugar de entrega, não de resistência. Como ela mesma expressa, uma forma de rendição e liberação, e não um sísifico carregar de rochedos e fardos. Em termos muito mais genéricos, eu quero estar num lugar de amor e paz, distante de toda violência.

A minha paixão pela imagem dos tubarões foi, nos últimos anos, se convertendo num encantamento pela imagem das baleias. Ainda amo os tubarões, não se enganem, mas meus olhos se têm fascinado mais com saltos pacíficos e esguichos meditativos. Foi uma mudança que se deu sem eu notar, na verdade, mas que, em retrospectiva, me parece significativa do/no momento de vida que é o meu. Visão de mundo, de comportamento e de uma série de outras coisas que se vêm alterando para mim. Ouvi da minha irmã, há alguns dias, no meu aniversário, que eu saí de uma forma muito grosseira de dizer as coisas, de expressar minhas impressões negativas sobre os outros, por exemplo, para uma forma mais branda, menos bruta. Achei bacana a observação de olhos que não me acompanham no cotidiano, mas que me observam com carinho amoroso e tiveram a perspicácia de notar algo que tem sido, de fato, um autotrabalho constante e consciente em diversas esferas.

O podcast da moça alegre tem uma ideia muito simples: muçulmanos que leem o Alcorão e explicam o texto segundo sua visão dele. Talvez "comentam" seja melhor que "explicam". Não se trata de leituras teológicas, mas de interpretações muito pessoais e, se bem entendi, cotidianos do texto por que ela se declara apaixonada. E eu chego onde eu estou, que são dois lugares. 
 
Num curso sobre o hinduísmo, em que se fala sobre os gunas, "fios" que compõem todo o cosmo, mostra-se como esses atributos se conectam e perpassam o mundo físico, humano e espiritual. Tama, preguiça, inércia; raja, moção, movimento; sattva, equilíbrio, leveza. O objetivo final do adepto é sair da preguiça para o movimento, sem o exagero, para chegar a sattva, ao meio-termo, um contentamento com aquilo que se tem e, em termos espirituais, à iluminação ou ao conhecimento. Isso é a leveza, isso é a luz. Sattva é o lugar de entrega, de rendição.  A minha reflexão dagora é sobre a luta em que eu estou: sair dum ano de dois empregos com uma sobrecarga horária que me exauriu para a atual (e psicologicamente assoberbante) qualificação de adaptação... Entrei nessa qualificação com tanto ímpeto, porque se me exigiu tanta força bruta pra conseguir o ingresso (como em tudo que envolve burocracia neste país...), que eu não consegui ainda me desligar do movimento de dar porrada pra um momento de "cheguei, estou aqui, deixe eu me equilibrar nesse esquema", não consegui ainda me colocar numa situação em que eu consiga simplesmente vivenciar esse processo até ele chegar ao final. Não consegui ainda alcançar o lugar de entrega.

Nas minhas devocionais do Advento (adoráveis, circulares, planejadas), leio o livro de Jonas e vejo e leio e ouço comentários (teológicos e não teológicos) sobre os quatros capítulos bíblicos. No livrinho que estou usando como guia, encontrei a significação de "pomba" para o nome Jonas, a pomba como símbolo de cura. A pomba que leva o povo de Nínive à rendição. Outra coisa bacana: Jonas, um profeta forte, citado pelo e cotejado com o Cristo, ultrapassa modelos fixos e de perfeição, desobedece, critica, se revolta e se reconcilia com o seu deus. Seu caminho de entrega é único e "íntimo do Senhor, destrói todos os modelos e convida leitoras e leitores a confiarem em Deus e a esperarem nEle sem modelos prévios", que idealizam uma relação com o divino e mais a dificultam (se não a impossibilitam...) que ajudam quem quer vivenciar a sua religião/religação com o sagrado. A citação é adaptada da p. 30 de Jonas: Um drama de amizade entre Deus e seu profeta em benefício da humanidade, escrito pelo professor de Teologia Peter Wick.         


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Jonas na entrada da Petrikirche em Rostock
 
 
 
 

domingo, julho 30, 2023

Dos últimos dias

 

Adoro ritos, rituais, rotinas, e isso não é de hoje. Adoro os pequenos recursos que a gente descobre depois de certo tempo morando num bairro e as pequenas delícias que a gente vai incrustando no cotidiano graças às descobertas. 

Descendo uma estação antes da minha, não preciso andar até à parada pra pegar o ônibus que me deixa na porta de casa. Acontece que o ônibus passa a cada vinte minutos, e eu preciso sempre verificar se ele já passou, pra não passar vinte minutos esperando. Com o tempo, me dei conta de que esses vinte minutos são, na verdade, o intervalo ideal pra passar pelo mercado pra necessidades pequenas. Hoje, por exemplo, desci e comprei os ovos e pães com gergelim. Quando saí do mercado, foi atravessar a rua e entrar no ônibus. 

No meu bairro mesmo, Garstedt, eu me lembro de ter identificado, na época da pandemia e da redação da Tese, dois horários em que o Sol batia em dois pontos diferentes do bosque que começa na minha esquina. Durante aqueles dias difíceis de muita reclusão duplamente motivada, essa descoberta foi muito necessária. Esta semana foi muito difícil, e isso fez com que eu retomasse algumas práticas esquecidas, como alugar uma das bicicletas da cidade e sair pedalando ao léu, descobrindo paisagens de cores e cheiros diferentes. Uma das descobertas desta semana foi um pequeno jardim chamado Bustão no meio do parque da cidade, o qual me deu a nítida e levemente dolorida certeza de ter explorado minha atual cidade muito menos do que deveria. Confirmação disso são um jardim de flores multicoloridas que descobri no caminho pro Bustão (que cheiros doces!) e um livro que tenho (e  que pouco folheei) sobre os objetos artísticos espalhados pelas ruas e parques da cidade. A própria ideia do Bustão já é linda e poética: "Vinho, tâmaras, oliveira, trigo, cevada e romã -- no Bustão, o jardim bíblico de vinhos e frutos no Parque da Cidade de Norderstedt, crescem os sete frutos da louvada terra de Canaã e muitas outras plantas", segundo a descrição do panfleto.  

A semana foi difícil porque teve muito tempo dedicado a burocracia. Uma visita ao que tenho chamado de Departamento de Estrangeiros (a Ausländerbehörde) e outra ao que tenho chamado de Secretaria de Educação (a Behörde für Schule und Berufsbildung ou, popularmente, a Schulbehörde). Ir a esses lugares é sempre muito desgastante, traz consigo uma série de ansiedades e angústias ligadas a exigências absurdas e um dispêndio insalubre de tempo. Meu lado Poliana me convence a citar aqui somente o positivo: estão liberadas a autorização e a permissão (sim, pasmem: duas coisas diferentes, conseguidas em Departamentos diferentes, por meio de processos documentais diferentes) para eu começar a qualificação de adaptação para eu me "tornar" (aspas denotando ironia) professor de Latim. O contrato com a Secretaria de Educação está assinado e a posse se dará na terça-feira. 

No meio disso tudo, tenho continuado a leitura dos artigos de um dossiê bacana sobre novos começos, numa revista de Psicologia. Há duas aqui: Psicologia hoje e Psicologia te leva mais longe, ambas boas; a última, minha favorita; a primeira, a que venho lendo. Hoje li um artigo sobre a importância dos rituais e me impressionei quando reli o primeiro parágrafo deste meu texto, que tinha escrito faz pouco mais que uma semana. Estou vivenciando meus dias atuais entre dois ritos próprios das férias, o excesso de tempo na cama vendo séries e a retomada do russo, desta vez com aulas particulares e horas de tandem, por um lado, e alguns rituais do novo começo, por outro lado, o qual se marca, por ora, não só pelo encerramento de ciclos sisíficos junto à burocracia alemã, mas também pela preparação da mudança para um novo apartamento.

Contratação de transportadora, rescisão de contratos com a companhia de luz e gás e com a academia, mudança do contrato com a telefônica, caixas de papelão, malas e muitas sacolas de lixo têm sido (e vão ser) uma boa descrição destes dias passados (e das próximas duas semanas). Uma primeira faxina de três horas já rolou: só a cozinha do novo apartamento, com seus armários embutidos, consumiram esses 180 minutos. O plano é tirar mais um dia para a faxina lá, a terça, logo após a posse, já que a mudança se fará na quinta. E ela ainda acha que na última semana de férias, de 7 a 11 de agosto, ela vai fazer um curso intensivo online de russo: três horas por dia.   

 

         

terça-feira, julho 11, 2023

Como tem passado? -- ele me perguntou


Comecei a redigir este texto faz meses, numa semana de muito. Muitas alegrias, muitas ansiedades e muitos questionamentos. Ela começou com a expectativa de um reencontro com uma amiga querida, terminou com questionamentos duros sobre o que quero e quais caminhos percorrer para chegar lá.

A amiga querida, Sandra, esteve aqui em Hamburgo, acompanhada de filha e genro; foi maravilhoso revê-la e partilhar momentos íntimos de histórias presentes e passadas, passeio de barco, leitura de oráculos e comidas e comidinhas. Da alegria imensa que foram esses dois dias, fui parar de volta no mundo da realidade do meu trabalho atual, tão lindo quando cansativo. 

Trabalho, de tarde, em uma escola infantil de horário integral. Basicamente realizo o trabalho de "educador", na tradução literal da palavra pomposa que descreve a profissão em alemão, Erzieher, o que eu prefiro chamar de "guardador de crianças" -- como guardador de rebanhos. Esse chamamento tem mais que ver com a forma prática como vejo o meu fazer: criar laços, ouvir, ensinar coisas de relacionamento com os outros e com o mundo, resolver conflitos. Como na outra (professor de Latim), esta profissão me foi liberada graças às qualificações adquiridas no Brasil, pelos anos de Magistério, o já não mais existente curso de formação técnica para professores primários, e os de Licenciatura, agregados à graduação em Letras. Como para a outra, o reconhecimento dessas qualificações foi parcial, o que implica que preciso fazer "formações" para ser plenamente habilitado. No caso da firma em que trabalho, um total de 80h iniciais com temas específicos. Já revi psicologia do desenvolvimento, a importância dos brinquedos e brincadeiras na educação, a observação como ferramenta pedagógica. Previstos estão, na sequência, minicursos sobre jogos de movimento corporal, criatividade como fortalecedor na infância, psicologia do comportamento infantil e primeiros socorros. As quarenta horas que faltam precisam ser cumpridas ainda este semestre, porque no segundo eu devo começar outra qaulificação, bem mais pesada, como professor de Latim.     

Para poucos é novidade quanto o meu encanto com o latim, seu ensino, sua literatura, a mitologia greco-latina, tudo empalideceu bastante depois da conclusão do Doutorado. Esses efeitos e afetos tiveram pouco que ver com a Tese em si, muito mais com uma nova visão de mundo que se criou em mim ao longo destes já quase cinco anos de Alemanha. A licenciatura em Letras, Português e Latim, é, no entanto, a que mais me rende financeiramente, já que o trabalho como guardador de crianças é — lamentavelmente — menos bem pago. Assim é que vou me submeter ao absurdo da formação que me exigem: 1,5 ano de contrato em tempo integral, mas com 50% do salário correspondente. E a tal qualificação, segundo consta, não é leve. 

Minhas vontades flutuam. Até o ano passado, me aterrorizava a ideia de voltar a trabalhar com crianças, e tudo que eu queria era começar a tal qualificação como professor de Latim. No ginásio em que trabalho, atualmente como professor de Latim e de Francês, o conhecimento do que é o cotidiano de um professor escolar me cansou bastante; na escola da tarde, a convivência diária com as crianças me desestressa e funciona como um equilibrante em face do peso do trabalho letivo no ginásio. Minha maior preocupação, no momento, é como um contrato de tempo integral no estresse pode me impedir de ter um de tempo parcial para o trabalho como guardador, o que me traz, em geral, mais prazer. 

Em meio a tudo isso, havia ainda a revisão final da Tese, a preparação de um dossiê para o seguro de aposentadoria e a declaração do imposto de renda, todas essas coisas do cotidiano que causam uma pressão enorme em ruído de fundo dos meus raciocínios e reflexões diárias. Cabe o meme “queria ⭐️ morta”. Delas resta agora apenas a revisão da Tese, que eu me prometo terminar nas férias de julho a agosto. O que há agora é  a espera da resposta da agência de trabalho, de cuja autorização preciso para o contrato de trabalho da qualificação, e as decisões com relação à continuidade do trabalho como guardador à tarde, se ele será possível num contrato reduido de oito horas — além do tempo integral da qualificação.

terça-feira, maio 30, 2023

 

Kama looked at Vasanta in despair, for he simply saw no way for them to penetrate the complete absorption of Shiva. Rati caught the glance and, responding to his need, placed her small hand in his, holding it with childlike trust. That small gesture gave him the epiphany he had prayed for and he finally had his answers. Signaling to Rati and Vasanta to step back, Kama prepared himself. He notched his arrow and tensed in concentration but did not let the arrow fly.


Instead he closed his eyes and dwelt on love and loss. He remembered the terrible grief he had felt when Purnakala was taken away from him. But even that paled into  insignificance when he thought of his impending separation from Rati. A terrible sense of loss flooded his senses, and not knowing when or if they would ever be together again, his heart broke into a million pieces. At that moment Kama knew with dread certainty that even his impending death would be less excruciating.

As his mind unravelled with grief that almost bordered on madness, Kama forced himself to dwell on his sorrow, till that welcome moment when Shiva recognized a kindred spirit in the vicinity and opened his mind to him in an outpouring sympathy and empathy. Their spirits were conjoined in their combined misery and Kama felt Shiva's deep-rooted loss as if it were his own. Precious memories of a happier time with the gentle Goddess who had loved him so, the apprehension he had snuffed out when he had allowed Sati to attend her father's yagna, and the all-encompassing guilt he felt over her subsequent fate, were all revealed in their nakedness to Kama--so much so that he almost recoiled as the white hot anguish scorched him with its throbbing intensity.

 

 

Aching for Shiva even more than he did for himself, Kama insinuated himself further into the core of the Destroyer, desperate to help him and bring him out of that pall of suffering. Ever so gently, he held out the tender promise of hope, sensing that the Destroyer's loneliness was profound. Kama now proceeded to flood Shiva's mind with the images of a reality that he had not embraced yet--whispering to him of the long-lost Sati who had come back to him  in another form. With delicate strokes, the story of Parvati of the fawn eyes and the kind heart was painted. Kama missed out nothing--the yearning she had felt for Shiva since her youngest days, the hardships she had endured for his sake, the dedication of the young life towards caring for him--all were laid bare before the mind's eye of the three-eyed God. 


Miraculously, the sparks of hope Kama had ignited using the Destroyer's flinty yearning caught fire and filled him with an alien happiness. Eager to see the miracle for himself, Shiva brushed away the trappings of his ascetic fervour and opened his eyes in sudden heady anticipation to see Parvati on her knees before him, head bowed in silent prayer. As he gazed at her with naked longing, Parvati felt it in the manner of an intimate touch, and she blushed red, although she refused coyly to raise her eyes to meet his. Something within Shiva stirred slowly to  life and at that moment, Kama fired five arrows into his exposed heart in quick succession.    

For one glorious moment, all was well with the world, for Shiva believed that he had got his Sati back. Parvati dared to meet his gaze then and the spell was shattered for it was a stranger's eyes Shiva saw. He realized with a dreadful pang of fresh anguish that he had been cheated and the Sati he loved was never coming back. Fate was merely offering him a replacement and he rejected her outright. It was like losing his Sati all over again and Shiva tottered on the brink of madness as the devastating grief threatened to tear him into pieces. His fierce survival instincts kicked in as primordial rage coursed through him, drowning out all other emotions in the rush, searching for the interloper who had dared trespass on the innermost reaches of his mind with voyeuristic abandon before freely tampering with his heart. 

Shiva's eyes locked into Kama's for a split second. The magnitude of his wrath should have reduced Kama to a limp mass of terror--for there was death writ large in those eyes--but Kama stood erect and refused to flinch. In the eye of his victim, Shiva saw nothing but understanding and pity. It was more than he could stand and the tenuous restraints holding his rage in check snapped. He opened his dreaded third eye and the offending individual who had dared feel sorry for the mighty Destroyer was reduced to ash. 

 

Kamadeva -- The God of Desire, Anuja Chandramouli, p. 125-7   

domingo, abril 09, 2023

 

Lista de 2022

 

1) 1º. de janeiro – Margaret Atwood, três contos: Happy endings, Time capsule found on the dead planet, and Torching the Dusties (este último na tradução em alemão de Monika Baark, Fackelt die Alten ab).

Estas foram leituras de um círculo que discute textos que tenham fundo/valor político, parte da programação de uma ONG (?) chamada A nova sociedade, que eu descobri por meio da minha última psicóloga, a daqui, pra que não pudesse sair de um semestre e poucos de terapia dizendo que não serviu para absolutamente nada.

 

2) 22/1 – Jocelyne Saucier, Les héritiers de la mine

Essa foi a primeira leitura do projeto do ano passado: literatura francófona. Meio que sabendo da concreta possibilidade de voltar a ensinar francês, resolvi me reaproximar da língua pela literatura – mas não queria saber de França.

 

3) 2/2 – Micheliny Verunschk, O som do rugido da onça

Um romance interessante, com uma proposta bacana e admirável pesquisa de preparação. Gostei muito da leitura, um presente da sempre WL.

 

4) 29/3 – Cícero, Sobre a adivinhação (trad. Beatris Ribeiro Gratti)

 

5) 2/4 – Edem Awumey, Mina parmi les ombres

 

6) 29/4 – Chitra Banerjee Divakaruni, Before we visit the Goddess

 

7) 24/5 – Statius, Achilleid (trad. J. H. Mozley)

 

8) 26/5 – Catherine Leroux, La Marche en forêt

Esta autora, como o de 5), eu descobri graças a uma série documental (do delicioso arte) a respeito de autores canadenses contemporâneos. O livro, não diferentemente do de 2), é um drama de família. Este é construído em fragmentos, com personagens que se delineiam muito aos poucos e sem contornos muitos pesados, uma configuração interessante que se lê com a árvore genealógica que abre o romance.

9) 13/8 – Hanns-Josef Ortheil, Hecke

10) 11/9 – Ken Bugul, Riwan ou le chemin de sable

11) 25/10 – Stefan Heym, Woher soll ein Mensch wissen

12) 6/11 – Jurek Becker, Jakob der Lügner

13) 26/12 – Anselm Grün, Dein Licht schenkt uns Hoffnung – 24 Rituale für den Advent

sábado, março 11, 2023

[sai de cena]

 

Uma coisa muito útil que aprendi nos últimos tempos foi retirar-me. Ao lado da aprendizagem de dar tempo ao tempo, acho que tenho conseguido chegar menos a confrontações — que sempre foram, de minha parte, cheias de violência de toda a sorte — e evitar desgastes emocionais maiores do que os já presenteados pelo cotidiano. 

Hoje eu estava bem tranquilinho, depois de uma noite bem dormida, no primeiro metrô em direção ao emprego da tarde. À tarde eu trabalho como “guardador de crianças” (ou “educador”, se eu quisesse me dar uma tradução pomposa pra uma atividade que tem pouco de soberba em si mesma). Estou há pouco menos que três meses bem feliz na pré-escola, com crianças de cinco a seis anos. Trabalho numa escola muito cosmopolita, descubro a cada dia um país novo no mapa, converso em português, alemão e (no meu pseudo) russo com crianças de toda origem; descubro no meio de roupas, mochilas, calçados e brinquedos caros as mesmas necessidades de atenção, proteção, carinho e limites e regras claras de que todo miúdo precisa. Ainda que hoje seja um dia diferente, pois vou ser retirado da minha zona de conforto da pré-escola e colocado num grupo misto e desordenado (“colônia de férias”), eu estava tranquilinho. 

Daí, logo na minha segunda estação dentro do metrô, entra-me uma senhora e me solta um можно?, porque eu estava com a mochila no assento do lado do meu. Tirando o que eu percebi como russo, nada de estranho na situação. Ela se sentou à minha direita, sua mãe diante de nós dois, ocupando dois bancos; em um dos bancos no conjunto de quatro à nossa direita, pra lá do corredor, sua filha se sentou, claramente no desejo de ficar afastada de mãe e avó. Em seguida, começa uma discussão em tom bastante alto para o que é a normalidade dentro de um metrô por estas bandas. Conhecendo o incômodo que qualquer alteração acústica me causa, já me pus no meu constante estado de autopoliciamento. Aí veio o mais absurdo de toda a situação: com a máscara cobrindo somente a boca, num tom bruto e autoritário, a mãe pergunta à filha onde foi parar a máscara dela. No volume alto, movimento de tampa nariz e destampa nariz e boca que se seguiram, meu incômodo foi só aumentando, exponenciado por notar que a senhora fungava o tempo todo e estava com o nariz bem entupido. 

Eu comecei a observar o outro extremo do compartimento, já que minha reação passivo-agressiva de olhar feio pra senhorinha a cada vez que ela baixava a máscara estava tendo efeito zero. Assim que se desocupou um assento, fui pra bem longe. 

Pra bem longe eu fui também no refeitório da escola em que trabalho à tarde. Há um sistema bem planejado de separarem-se as crianças de cada turma de acordo com o horário em que elas são buscadas a cada dia. Uma mãe errou no horário e resolveu que queria levar o filho embora no horário do almoço, por volta das 13h, quando o menino estava registrado para sair às 14h30. A educadora que estava ali perto explicou (umas três vezes, repetindo-se, como quase sempre é necessário com os pais) que ela poderia levar o menino antes de ele comer ou somente daí a uma hora e meia, no próximo horário de saída. Só que o almoço do dia era bom, e o menino não queria ir sem almoçar. Minha empatia pela situação da mãe, o desejo do menino e a impotência da educadora me fizeram querer tentar resolver o problema. Felizmente, eu me dei conta da minha presunção antes, no mesmo momento em que caiu a evidente ficha de que eu não estava envolvido no imbróglio e só precisava mesmo era sair de perto dos três. 

Como nas situações, também nas relações. Há pelo menos sete anos venho trabalhando nisso: fugir de pessoas que fizeram escolhas de vida muito diferentes da minha, escolhas que me parecem cercadas de ódio e violência, ainda que isso não se perceba no cotidiano da/pela pessoa em questão. A comunicação se dificulta, as duas artes não conseguem se ouvir, eu acabo entrando no meu modo “melhor nem dizer nada” e me afasto. Da mesma forma, respeito quem age de forma parecida. Amigos, queridos, parentes ou conhecidos que se afastam — afastados permanecerão. A interrelação precisa sempre ser uma via de duas mãos; se se desfaz, é possível que seja livramento.