sábado, dezembro 04, 2021













 Eu e o russo


Faz alguns dias, ouvi de um amigo: “Sempre me impressiona a sua capacidade de se encantar continua e renovadamente pelas coisas”. O comentário veio depois de eu contar da minha descoberta da madrugada anterior, uma lista longa de mais de vinte e cinco cursos de russo que conjugam língua e temas da cultura russa atual, em plataformas diferentes. Essas novas possibilidades me deram mais ânimo pro atual A2.


Ao contrário do que poderia supor quem sabe de uma paixonite que tive por um russo em 2019, minha história com a língua começou graças a um contexto acadêmico ainda nos idos da graduação na USP. Já não sei o que veio primeiro, se a análise de Ovídio ou a Semiótica. Uma das minhas paixões do final da graduação foi a semiótica francesa, a greimasiana, que ainda uso, ainda que menos diretamente, como abordagem de leitura textual. Se bem me lembro, cheguei a fazer um curso na graduação e três na pós sobre o assunto. Num desses, apresentou-se um histórico da disciplina e falou-se na “escola russa”. Me lembra ter comprado um livrinho sobre o assunto, mas ele nunca foi lido. A língua russa começava a se criar no meu imaginário. Num outro livrinho, chamado Semiótica russa, daquela conhecida coleção da Perspectiva, li o artigo de um Checheglov sobre as Metamorfoses de Ovídio e fiquei encantado. Por essa época também havia uma professora de Latim na USP que, segundo um conhecido meu, “falava russo como uma russa”— o que, na minha imaginação adolescente, significava dizer que ela tinha acesso a um mundo de bibliografia a que nenhum outro professor da área tinha. E eu pensava como isso seria maravilhoso. Como alguns anos depois, por volta de 2006, quando me resolvi por Sílio Itálico como autor de estudo pro Doutorado, ficou determinado que eu precisava estudar alemão, resolvi que o russo seria minha última língua da vida, “minha ocupação da velhice”, como disse muitas vezes e, pasmem, nunca em tom de brincadeira. Minha ideia era fazer o doutorado na Alemanha e, enquanto estivesse aqui, fazer cursos de imersão ou intercâmbio no país vizinho. Uma digressão rápida: Antes de conhecer Peterlini, professor de Latim da USP, falecido há poucos anos, eu achava que passar de uns 46 anos já era ser muito velho e que viver até uns 45 já me bastaria. Foi só depois de fazer um curso com ele, que à época tinha lá seus setenta-e, que eu resolvi que viver mais anos talvez fosse interessante, se fosse pra me tornar algo como o que eu via ali naquela imponência.   

Comecei a estudar russo em 2017, depois de uma negociação comigo mesmo. Por uma diminuição na minha carga horária de trabalho em sala de aula, cheguei à conclusão de que tinha algumas duas-três horas semanais que eu podia dedicar a um dos meus esportes favoritos: aprender algo novo. A primeira escolha foi voltar à Música. Não colou. Alguns meses depois, passadas duas tentativas frustradas, uma numa escola de música moderninha que exigia um semestre de introdução teórica num curso cheio de cirandas, percussão corporal, canto em conjunto e outras torturas que tais a cada aula, e outra com uma professora particular de piano, desisti. Tocar piano foi um sonho do começo da adolescência; esse momento me tinha escapado. Com quase quarenta, já não tinha vontade da disciplina que esse aprendizado exigia. A segunda escolha, mais óbvia e muito desejada desde-desde, seria uma nova língua, obviamente o russo. Mas eu tinha medo de me enredar no encantamento e dedicar tempo demais, o que eu não tinha, a essa nova (que eu ainda cria que seria a última) conquista linguística.

Meu livro atual tem doze lições, e eu entrei no ritmo de uma meta autoimposta de uma lição por mês, para acabar o A2 no fim do ano. Isso foi motivado por uma postagem num blogue qualquer desses apps de línguas estilo Babbel, Memrise, Duolingo ou que o valha, em que o autor discutia o que julgava serem elementos fundamentais para uma aprendizagem de sucesso. Entre as considerações bastante razoáveis do texto, “ter uma meta” foi uma que me pareceu fazer sentido e vir faltando à minha empreitada com o russo. Como a Tese estava praticamente concluída, podia então (isso era julho, creio eu) me dar ao luxo de pensar algo do tipo. Daí o planejamento de uma lição por mês. Corolário disso: descobri a lista de 25+ cursos (todos online, sem presença nem tutor) de um instituto de línguas asiáticas daqui (em Bochum). Os temas são maravilhosos! Dois somente são em nível de A2, e o plano é fazer ambos no primeiro semestre de 2022: “Rússia 360 graus” e “Rússia: primeiros olhares”. Isso sem contar um de A2 pelo Coursera... E os livros do B1 já estão comprados.   

O meu primeiro semestre de russo, lá em 2017, eu dediquei a cinco lições de um curso online de uma rede de TV da Rússia (RTD, estilo Deutsche Welle e TV5) e a uma dezena de lições (de um outro site) que esmiuçavam o alfabeto e o som das letras, com explicações fonéticas detalhadas e introdução de pequenas frases do tipo “Isto é uma rosa, uma banana, um guarda-chuva”. Depois disso, um semestre no curso de russo oferecido pela Volkshochschule dentro da Universität Hamburg. O professor era bom, e eu adorava receber o link semanal com uma música pop do momento e aqueles clipes coloridos e doidos, mas eu detestava a turma e não me adaptei ao ritmo muito intensivo do curso. Tive sorte: encontrei na Volkshochschule fora da universidade uma professora maravilhosa, muito didática, com um ritmo que era o extremo oposto do que eu tinha encarado antes. Duas lições por semestre. Dava tempo de fazer todos os exercícios, entregar trabalhinhos e estudar as correções, uma tranquilidade só. Fiz todo o A1 com ela e cheguei mesmo a começar o A2, também com ela, até a coronacrise chegar.

Usei também minhas táticas loucas. Como ser estudante me dava 50% de desconto nos cursos, teve um semestre em que me inscrevi no A1.3 (que eu já tinha concluído) e no A1.4 ao mesmo tempo. Como cada curso tinha apenas um encontro semanal, eu passava a ter duas aulas por semana, uma de revisão e outra de progressão. Também arranjei uma Tandempartnerin, uma companheira de intercâmbio linguístico, com quem eu trocava “aulas” de alemão por “aulas” de russo. Uma russinha fofa que se tornou uma amiga querida. Ficamos nesse troca-troca por uns bons dois anos e algo, até os horários não baterem mais. Agora tenho duas outras, uma da Letônia e uma da Ucrânia, e estou me debatendo com o livro, atrasado que estou, no fim da lição nove, querendo dar conta do A2 com urgência – mas sem pressa.  

PS: Terminei este texto hoje, mas ele já tinha sido iniciado no primeiro semestre. Embaixo dele, descobri este:


Varia/Drops/O que me move neste momento

Ganhei de uma amiga um calendário lindo com imagens aquareladas de baleias e propostas de reflexão, trabalho conjunto de uma artista chamada Estela Miazzi, uma psicóloga chamada Júlia Ramiro Belintani e uma designer gráfica chamada Manuela d’Albertas. No mês de julho, há uma silhueta que nada sinuosamente, talvez um cachalote, talvez uma jubarte, e sob ela: Ando com vontades grandes, pesadas e silenciosas, vontades que às vezes não cabem em mim, que as vezes quero minimizá-las. Vontades lentas, vontades de baleias. É assim que eu ando.

Tive dificuldade para dormir nas duas, três últimas noites. Uma coisa que faço para relaxar é fuçar coisas aleatórias nanétchi, descobrir coisa nova, trívia e novos caminhos de aprendizagem, criar vontades novas. E elas acabam se tornando imensas. Entre as muitas coisas dos últimos dias, descobri uma escola russa (Russificate), cuja página se me apresentou em francês, com cursos de/em russo, muitos sobre os temas mais variados (literatura, música, arquitetura, mitologia eslava...). É diferente da escola que eu já conhecia em Bochum (LSI), porque esses cursos são síncronos, com aulas reais e professores. E então que quero que meu russo chegue ao nível de poder fazer esses cursos, ao mesmo tempo em que quero curtir essa fase de não saber falar quase nada e de ter a certeza de que cada frase tem dez erros — o que é um alívio, porque a certeza do erro me libera da busca exaustiva de tentar não cometê-lo, minha fase atual no alemão.

Descobri também uma espécie de novela indiana que faz a narrativa de todos os ciclos míticos de que participa Ganexa. São já 900-e-blau episódios, e eu estava feliz vendo tudo com aquelas legendinhas autogeradas em inglês, quando, no terceiro episódio, elas desapareceram. Frustrado, vi o terceiro episódio inteiro em algo que julgo ser híndi, sem entender nada. E talvez o russo perca o posto de “a última língua que vou aprender na vida”. Descobri também que há uma professora de odissi em Hamburgo.

Eu quero só que a Tese e o Doutorado acabem. Neste exato momento, Sílio excluso, a Antiguidade Clássica não me traz tesão nenhum. Sinto falta da sala de aula e tenho redescoberto o francês na tradução do “Andreï Kourkov” que venho lendo. Na verdade, nem sei como havia me esquecido desta língua. Dia desses, revendo minha formação por motivos vários, fui me lembrando de quanto tempo dediquei a ela. Além do curso superior da Aliança Francesa, com as disciplinas de língua, literatura, civilização e tradução, na USP também chegay a fazer dois semestres de História da Literatura Francesa e dois de Literatura dos países de expressão francófona. Foi no segundo semestre desta que conheci o Chamoiseau. A carga horária dessa formação toda talvez seja maior que a dos cursos de Letras Francês de hoje. Também estive pensando em quantos alunos particulares e grupos em escolas eu tive; listando os livros com que ensinei, é impressionante a quantidade de abordagens distintas que aprendi e pelas quais lecionei (cito só Mauger bleu, La France en direct e Rond Point, nos extremos).             

Uma graphic novel sobre Beethoven (Goldjunge – Beethovens Jugendjahre de Mikael Ross), que acabou ficando na minha mesa depois de um curso que eu faria ter sido cancelado, tem desenhos lindos e cores fascinantes. E amanhã começa minha uma semana de férias em Amrun. Talvez leve comigo, além do Kurkov e dessa graphic novel, um livro sobre o Ramadan.  

2 comentários:

Iedo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Iedo disse...

Seu ritmo me impressiona. O da escrita, claro, porém especialmente como reflexo de um modo de viver que está escasseando mas que pode e deve reclamar por aí, se é que já não reclama, sobrevida futura. Em tempos de falta de ar, gosto de constatar sua respiração - desassossegada, porque viva - afinal natural. Inspirador, querido. 🌻