sexta-feira, junho 26, 2009

A Revelação

Um manancial de águas tranqüilas.



Então ele entrou ali. Vinha já preparado, sabia a notícia que podia receber. Sabia as implicações daquela notícia e o que de mudança ela acarretaria. Mas já não se estressava ao considerar todas essas coisas. Tinha tido uma boa metade de mês de reflexões, de orações, de meditação e preparação para o que viesse. Se viesse.

Fazia quinze dias, ali, naquele mesmo posto, ele tinha ido buscar os resultados de uma coleta. A assistente social que o recebeu, então, depois de uma ou duas horas de espera (já nem sequer se lembrava), havia se dirigido com ele para uma saleta no fundo do prédio, onde ela, sentada do outro lado da mesa, provavelmente cansada de um dia de trabalho, desatenta e distraída, começa a ler o papel:

"Bem... temos aqui... HIV, positivo; hepatite A, negativo..."

Ele, ao ouvir "HIV positivo", algo por que realmente não esperava, sem levantar a voz ou sequer mover-se na cadeira, pergunta em tom brando:

"Como?"

Isso foi em maio, pelo meio do mês. Em março ele tinha feito um exame anti-HIV e recebido o resultado: negativo. No ano anterior, no ano passado, em setembro, ele havia se exposto a uma relação de risco. Nada demais: tinha usado camisinha, mas a prática do sexo oral, quando tinha estado com um machucado no céu da boca, era preocupante. Não sei se ele teria se precavido se tivesse sabido, antes do ato, que o seu parceiro era soropositivo. Ele estava tão encantado com aquele menino, lindo, cheiroso, inteligente como poucos... não sei se ele teria se precavido. Enquanto esperava, no ano passado, que passasse o período da janela, ele mesmo havia considerado e reconsiderado que, se esse fosse o preço a pagar, ele estava disposto. É. Mais que encantado, ele estava apaixonado. E isso basta.

Talvez, agora, quando recebia a notícia, ele se arrependesse de ter tido tais pensamentos... mas eu acho que não. Ele sempre me disse que valorizava pouco a vida: não que quisesse morrer, mas que morreria, como mortal, e que pouco lhe fazia diferença se isso se daria agora ou em dez anos. A única coisa que o afastava do suicídio em horas de desespero era um misto de valores religiosos embotados e de frouxidão, "eu jamais seria capaz... sou frouxo demais", ele me repetia, às vezes.

Mas, no posto, em meados de maio, a assistente social então levanta a cabeça, acordada do torpor em que estava, e pergunta, assustada com a sua própria irresponsabilidade:

"Você não sabia?"
"Não... é a primeira vez que isso aparece num exame meu."

Ela, semi-desesperada, procura uma explicação. Algo que dissesse que a sua leitura anterior estava errada. O Elisa dava positivo, o Western Blot inconclusivo... talvez fosse mais uma das falhas causadas pela "grande sensibilidade" do Elisa (assim falam eles, personalizando o exame, como se ele tivesse vida). Sugerem-lhe que faça nova coleta e aguarde quinze dias. Ele, mui tranqüilamente, assim o faz. No final de maio, o Western Blot já não esconde o que antes só se imaginava. "Virou", ele ouviu dizerem. E assim, sem nenhuma alteração na sua vida, ele saiu do posto, como se nada tivesse acontecido. Tinha virado soropositivo.

sábado, junho 20, 2009

Então...


Então anteontem eu fui a Santo Amaro ver o meu médico, pela última vez. Ele me transferiu. Agora não vou mais comer pastel e tomar garapa toda vez que for ao médico, curtindo a culpa de saber que estou fazendo algo errado. Adoro pastel com garapa.

Então ontem eu fui ver um filme francês, do Panorama, no Reserva Cultural. Adoro francês.

Então hoje eu volto à hidroginástica. Adoro bancar o idiota, pulando na piscina.




Motivo

Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste :
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.



















quinta-feira, junho 11, 2009

E é-se um pequeno segredo sobre um grande segredo.

E é-se um pequeno segredo sobre um grande segredo.


Neste Longo Exercício de Alma...

Cecília Meireles

Ciência, amor, sabedoria,
- tudo jaz muito longe, sempre...
(Imensamente fora do nosso alcance!)

Desmancha-se o átomo,
domina-se a lágrima,
vence-se o abismo:
- cai-se, porém, logo de bruços e de olhos fechados,
e é-se um pequeno segredo
sobre um grande segredo.

Tristes ainda seremos por muito tempo,
embora de uma nobre tristeza,
nós, os que o sol e a lua
todos os dias encontram,
no espelho do silêncio refletidos,
neste longo exercício de alma.



Quando me propus escrever quatro postagens este mês, eu as tinha delineado (e eu as tinha delineadas) com mestria. Descobri que guardava o tal segredo, e eu nunca fui bom com segredos, era melhor contá-lo logo. Mas é um segredo que pode ser dolorido. Não se conta um segredo que pode ser dolorido, assim, como se não fosse nada... Como os leitores deste blogue são amigos queridos, alguns distantes, era preciso prepará-los para o segredo. Então eu planejei as quatro postagens. Mas eu sabia que elas podiam mudar, na minha cabeça, com o passar da semana que eu previra entre cada uma.


Metódico. Sempre o fui. Eu postaria amanhã, mas estarei ocupado. Com ele que me tem em segredo. Sim, o dia inteiro. E eu estou apaixonado. Ou me apaixonando, não sei ao certo. Só sei que "o instante existe e a minha vida está completa". Falando nela, descubro este poema, cuja segunda estrofe descreve tudo quanto eu tinha planejado dizer nesta segunda postagem: a mudança. Sem aflição.


Desmancha-se o átomo,
domina-se a lágrima,
vence-se o abismo:
- cai-se, porém, logo de bruços e de olhos fechados


E fiquei feliz de voltar à tia Ceci. Com o medo da overdose, porque a terceira postagem será uma volta às raízes, a transcrição dum poema dela que eu cito a cada dois minutos, porque ele diz tudo, fala do meu estado de alma, assim como este fala do exercício da alma, quando descobre as mudanças que a vida impõe. Na quarta postagem, a revelação. E, se não fosse o longo exercício de alma, sinônimo da singeleza de expressão da tia Ceci, eu teria postado uma musiquitcha do Pato Fu, hoje... Aliás, posto o essencial da letra dela, au cas où. Até semana que vem.


Vida Diet


Composição: John


A gente se acostuma com tudo
A tudo a gente se habitua
E até não ter um lugar
Dormir na rua
A tudo a gente se habitua

[...]

Não vai ser diferente
Se eu me for de repente
Se o céu cai sobre o mundo
E o mar se abrir
Em um inferno profundo

sexta-feira, junho 05, 2009

Mas isso foi...

Durante muito tempo eu quis escrever esta postagem. Não o fiz antes porque temia expor alguém(ns), mas hoje me parece que não mais.

Este mês eu farei quatro postagens. Tenho-as delineadas e delimitadas na minha cabecinha insana. Tenho dito a alguns amigos que "eu guardo um segredo (acho)", frase que venho utilizando como subnick no msn. Hoje cheguei à conclusão de que, sim, eu guardo um segredo. E me refiro a "segredo" numa acepção muito própria: eu só usei esta palavra, aqui neste blogue, uma vez, no ano passado. É um segredo como o que me foi contado, àquela época, que eu descobri que agora guardo.

Mudando de assunto, não é novidade para ninguém que eu amo Porto Alegre. Desde 2006, quando descobri aquele paraíso, faço uma viagem àquela cidade ao menos uma vez por ano.

("Qual a relação entre tudo isso, Everton?" -- Bem, hoje falo de exposição, segredo, ano passado, Porto Alegre... sei lá. Ao final das quatro ditas postagens, tudo estará claro. Além disso, só fiz tantas postagens num mês no ano passado, quando estava, justamente, em Porto Alegre.)

Em 2006, durante a minha primeira viagem a Porto Alegre, uma propaganda dessas de cartaz grandão, colada na janela traseira dos ônibus, me chamou muito a atenção... Não era para menos: um homem lindo, com um corpo divinamente esculpido, à direita, estava cercado por uma espiral de arame farpado. (Procurei no Google imagens o tal cartaz, mas nem consegui achar... Se alguém souber onde encontrá-lo, por favor, depois me conta.) Enfim, à esquerda, lê-se um texto: você ainda isola os soropositivos? A idéia, clara, era mostrar que o preconceito não está com nada, pois não se sabe, de fato, quem está infectado com o vírus. Quem imaginaria que aquele modelo lindo era soropositivo? E quem deixaria de amar aquela imagem linda depois da descoberta?

Num país como o nosso, em que o conhecimento adquirido não é necessariamente conhecimento divulgado, nem (muito menos) preconceito vencido, seria importante que quem conhece as coisas e causas abrisse a boca a falar. Daí teve essa noite, em que uns amigos conversavam na sala do meu apartamento, e um deles fala do seu pavor de pegar doenças e de como se protegia no sexo, etc e tals. Dois dos amigos que discutiam na sala eram biomédicos. De repente, sai o assunto da AIDS, do HIV, dos soropositivos...

"Ai, eu não ficaria com um soropositivo!"
"Nem eu!"
Saio eu do quarto: "Não? Eu sim. Eu me casaria com um. A grande paixão da minha vida é um rapaz soropositivo".

Choque. Bem, gente... Se todos estão dispostos a fazer sexo somente com camisinha, se de fato (será?) é isso que fazem... (Ouvi mesmo um desses amigos uma vez comentar que era só levar um pedacinho de PVC sempre na bolsa, pro caso dum sexo oral pintar no meio do dia, do nada... blá-blá-blá...) Que diferença faz fazer sexo com um soropositivo ou com um soronegativo? Enfim... Achei tudo muito preconceituoso, muito sem-noção... e vinha de quem tem, ex cathedra, a informação e o conhecimento da coisa.

Daí, em 2008, pouco depois de me apaixonar pelo tal soropositivo, veio-me a visita anual à Porto Alegre. Recebi, pelas minhas andanças, um panfletinho que trouxe para mostrar a ele e que até hoje guardo comigo (também não consegui achar uma imagem dele no Google, mas, no meio das minhas buscas, achei um videozinho que o valha, bem aqui). Tratava de uma campanha para orientar casais sorodiscordantes, para que o relacionamento pudesse fluir com a facilidade que, em princípio, o conhecimento e a (in)formação devem proporcionar. Um raio de esperança: talvez o moço por quem eu era (ou sou?) apaixonado me aceitasse, soronegativo.

Mas isso foi naquela época, quando eu só pensava nele.
Mas isso foi naquela cidade, quando eu estava em Porto Alegre.