Faz hoje uma semana que ele partiu. Quando ele veio, o Caçador e o Mensageiro já o haviam anunciado. Por um ruído do transmissor, eu havia compreendido que o seu nome era Pedro, pedra, mas podia ter sido Davi, duvidoso, só que nem era. O seu nome era outro, um que ele me revelou mais tarde, em segredo. Adoro segredos.
Bem, o fato é que eu estava preocupado com a sua chegada. Nunca imaginei que eu, um reles professor de línguas, fosse um dia conhecer um pirata. Eu tive muito medo, no começo. Eu o desenhava com tapa-olho, espada, perneta e com um papagaio falante, e qual não foi a minha surpresa quando ele apareceu, à minha porta, numa quinta-feira, com a bandana vermelha de sangue, tapando o olho esquerdo, uma roupa rota e nenhum animal falante no ombro. Uma capa gasta, puída, com buracos e rasgos. Nada manco, mas com botas também gastas. Era como se a roupa não importasse muito, e daí eu comecei a compreender que o mito se faz de essência, não de aparência. E sem espada.
E, meu Deus!, ele era lindo. Fascinante, isso, é essa a palavra.
Disse-lhe que tirasse a bandana. Ele tinha vindo para isso, para que eu lhe curasse a ferida. A visão lhe era turva e ele compreendia ainda muito pouco do que se tinha passado. Logo vi que a ferida tinha-lhe sido infligida por um sofrimento moral, espiritual até, talvez, e eu sabia bem que isso se curava com rezas, mezinhas e afeto. Sem afeto nada se cura. Ele era recluso e tinha medo de se abrir, e eu tinha medo da imagem que sempre me fizera de um pirata.
Uma vez eu o vi, na calada da noite, conversar com o Mário Sérgio. O Mário Sérgio é, em geral, bastante reservado. Fala pouco, fala com poucos. Mas é excelente conselheiro. O papo era fluido e eu me disse que o Pirata devia ser confiável. O próprio Mário Sérgio se pôs na sua cabeça, por vezes, agarrando-o com as unhas, e esse mesmo tigre tão feroz ficou dias agarrado ao computador depois que o Pirata partiu, como que guardando o posto onde por último ele tinha sido colocado, como que aguardando uma mensagem que declarasse que o Pirata retornaria.
Um dia eu compreendi umas linhas de raciocínio do Pedro, o Pirata. Ele tinha comentado que gostava de desenhar, mas tachava os seus próprios desenhos de rabiscos. Olha... eu o vi "garatujar" uma vez, e tamanha expressão tinha pouco de rabisco, muito de encantamento. O poder do risco. Entendi que estávamos juntos e de corpo e de alma quando ele me desenhou, um dia, e o meu retrato era diferente de todos os outros. E não só pelos desenhos ele se experessava: ele também contava histórias. Como ninguém. E sabia histórias e Histórias. Certa feita, fez-me apontar para um país aleatoriamente, num mapa; selecionado o país, ele me contou a História daquele povo, ricamente influenciada e determinada pela sua geografia. Contava histórias que sabia, criava as que não existiam.
Um mês se passou. Era a hora de acabar com o segredo: eu tinha vivido na sua vida por algo em torno de trinta dias, eu que tinha sido descrito assim, no seu "caderno masculino de anotações pessoais" (porque a palavra "diário" teria soado muito feminil para um pirata):
Mas agora... agora eu tenho um segredo. Um segredo bom, mas que me fez chorar muito. E olha que é muito difícil me fazer chorar.
Bem, eu só estou escrevendo isso para dizer mesmo.
Para dizer que eu realmente precisava de um amigo agora.
E o segredo terminava ali, com a minha retirada. Eu precisava partir para Hinée, uma cidadezinha cinzenta e portuária, onde havia um lago com um monstro, onde homens vestiam saiotes e as mulheres tocavam um instrumento de sopro. Mas eu parti mudado: aprendi que um nome revela os seus semas de acordo com o contexto: o Pirata que eu conheci revelava no seu nome os semas de "liberdade" e "aventura", eu soube, porque ele nunca me aprisionou, como podia ter feito (e como talvez eu mesmo tenha querido), nem nunca deixou de viver a sua vida por causa da dor que o olho ferido lhe causava. Quanto ao tesouro que todo pirata busca, não sei se ele o encontrou enquanto estivemos juntos, ele nunca o mencionou. O que sei é que, após o tratamento que eu ministrei, bandana branca e capa refeita, a sua visão já não era a mesma.
Ei, você aí que leu a minha estorinha e agora balança a cabeça, dizendo que "isso não é uma aventura de piratas", preste atenção! Não escrevi este texto para agradar a você. E se você de fato acha que receber um pirata na sua casa não é nada demais, eu te desejo boa sorte. Humpf.