“Experiar somnum, de te mihi somnia quaeram:
Fac uenias oculis umbra benigna meis!”
Dixit, et incerto permisit bracchia somno,
Nescia, uae, furiis accubuisse nouis.
Propércio, IV, 4, 65-68
“Recorrerei ao sono, pedirei sonhos de ti para mim:
Vem em visão benigna para os meus olhos!”
Disse, e entregou os braços a um sono incerto,
Ignorante – coitada! – de ter-se deitado em novos delírios.
Faz hoje dois meses que eu esse sonho. Eu fui pra cama sem muito na cabeça e, bem, felicidade se acha é em horinhas de descuido.
era pouco mais que uma da manhã, ele bateu na porta toque-toque eu perguntei se era ele ele disse que sim eu abri ele entrou. eu estava com a boca espumando, não de raiva, mas da pasta de dente, olhei para ele e soube que eu quereria que ele ficasse. ele olhou para a porta do meu quarto, ficou olhando lá os meus postais e fotos, enquanto eu trocava meia dúzia de palavras com o meu roomie.
daí entramos no quarto, deitamos na cama, fizemos amor.
Aqui a K me interrompe o texto e diz, com cara de espanto e reprovação: “Fizemos amor!?”. E eu sou obrigado a abrir parênteses e explicar que sim. Detesto a expressão, continuo detestando, mas a minha insuficiência vocabular não me permite nada de melhor aqui. É que conversamos, trocamos carícias, beijamos-nos com as bocas e com os olhos e com as pontas dos dedos e com o corpo inteiro. E também fizemos sexo.
de repente era dois dias depois e a gente estava girando de mãos dadas no sopé das escadas rolantes do SESC. em seguida, a gente tava no vidro do aquário, e eu comia o meu bolo de banana tradicional e eu tomava a minha coca-cola e ele bebia um café com leite. ele sorria atrás do aparelho e dos olhos claros e eu tive certeza do que já tinha sabido que eu queria que ele ficasse. aí ele me trouxe pra casa.
na praça do relógio, ele me dizia coisas que eu não entendia ao certo, mas eu gostava da sua inteligência de raciocínio. “você não tem esse repertório”, ele me justificava na minha incompreensão e foda-se ele dizia cada vez que se embaralhava. eu sorria. eu senti frio e ele me abraçou dentro do seu casaco. um grand jeté en avant e fomos parar numa câmara negra, onde tiras de couro preto formavam as quatro paredes. eu falei de Sartre ele tinha frio subimos pro meu apartamento.
na minha cama, embaixo das cobertas com sensação de edredom da vizinha, ele pousou o queixo no meu peito e eu perdi a linha de pensamento olhando os seus olhos claros. perguntei se ele queria ficar, mas ele disse que não. fazia frio.
no dia seguinte, ele me contou um segredo. acho que eu não entendi. a partir daí, nós não nos compreendíamos, falávamos línguas diferentes. eu o achava sempre agressivo, ele me chamava de agressivo e egoísta. eu só entendia isso, mas não o porquê disso, e todas as suas falas terminavam com “isso é o que você acha”. e assim se encerravam as discussões.
eu me lembrei de que ele queria que eu fosse ao SESC vê-lo nadar. do aquário, eu olhava as braçadas e as idas e vindas, na água verde-claro-azul-escuro da piscina limpa cheia de cloro. pisco os olhos e ele desaparece, sem silêncio. e eu fico olhando, procurando, como quem se hipnotiza no fundo da piscina, procurando os tampões auriculares de silicone perdidos, fim do mundo de ruídos externos, ou a chave do cadeado da porta do armário, única possibilidade de reaver bens trancados.
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