Para Brunilda Surfistinha
Lembro-me de que essa sensação de
cabeça oca era algo que sentia quando voltava da balada, nos meus anos de
juventude paulistana. É uma sensação estranha, um vácuo com eco, uma falta de
linearidade no raciocínio em que pouco faz sentido e nada se concatena. Mas é o
que tem pra hoje.
Um pouco mais à frente, uma
motoca passa, e eu me alegro com o pensamento de que pudesse ser uma de minhas tão
esperadas entregas. São quase onze da noite, isso nem é uma possibilidade. E
não é mesmo: vejo o caseiro do meu conjunto residencial aproximar-se do portão
e descer. Entro em casa, ele me chama pela janela, um dos meus livros chegou.
Felicidade pequena, mas feliz, ainda assim.
A doença é uma sarcina onerosa. É
uma sina rancorosa. Hoje me dei conta de que faz seis anos que ela me persegue.
Provavelmente só acordei pro fato pelo desgosto da notícia de um exame a ser
repetido. Aquele mesmo. O da outra vez. Aquele agressivo, apesar de em nada
dolorido. Aquele que me deprime, que me faz chorar, de dor psicológica,
exaurido num sentimento de humilhação. Exame invasivo. Exame inviável. Exame
impensável. Continuo achando que só pode ser
teste de paciência. Esses médicos têm formas e mais formas de testar a
paciência do paciente.
Cheguei de volta ao câmpus com
uma tristeza imensa, pedindo pelo gabinete vazio. Era pouco pra pedir, mas era
muito pra esperar. Dois monitores usavam o computador, e eu fui obrigado a
permanecer na sala por uns quarenta minutos e me fazer de ocupado para evitar
que pensassem que eu saía só porque eles estavam ali. É possível que nem se ligassem
na minha saída. Talvez nem tivessem reparado na minha entrada, mesmo eu tendo dado boa-tarde. E eles tendo respondido.
Na rua, pouco depois da primeira
motoca, a do caseiro, apareceu uma segunda. Duas crianças lindas, um menino de
cueca e uma menina de calcinha, conversavam no portão, e meu raciocínio
errabundo se radicou e estancou quando ouviu a menina, que morava do outro lado da rua,
dizer que só podia brincar se fosse na casa dela. Vi-a atravessar a rua
correndo e ser atropelada, eu tentar fazer algo, impotente, e a dor que isso me
causaria. Por que os pais deixam suas crianças na rua, à noite? Quanto sofrimento! Mas nada aconteceu, afinal; a motoca passou, eu respirei e me chamei de neurótico e outras coisas afins.
De tarde, quando ia pro gabinete,
vi mais alguns desses meninos que ficam ensaiando coreografias nos espaços
abertos do Centro. É bacana dar aula no meio das Artes. É um tocando, é um dançando,
é outro sendo estranho... Fato é que um deles era lindinho. Na volta do
gabinete, depois dos quarenta minutos de disfarce, desço as escadas e vejo que
o mocinho que eu tinha achado bonitinho me olha e faz um comentário. Os três
colegas do grupo concordam, olhando em minha direção, e eu ouço, ao passar
perto do grupo, algo como “só faltava o gorrinho”.
Que triste. Eu estava com uma
camiseta listrada (que espanto!...) de branco e vermelho e me disse que, se só
faltava o gorrinho, só me podiam ter chamado de Papai Noel. Bom velhinho é o
caralho. Na minha depressão, eu me senti gordo, velho e com frio como se
estivesse no Pólo Norte. Vontadinha de morrer. Antes do exame, claro. Nem
durante, nem depois. Antes.
Mas a vida tem suas belezas. Ela
traz entregas de pequenas pérolas de alegria inesperadas, como o livro esperado,
como o telefonema inesperado. Minha amiguinha Brunilda. Um papo bacana no café,
avalanche de histórias de elefantinho deprimido, paquiderme da depressão, mas
uma voz amorosa que explica, depois de rir:
“Ahahah, é verdade, hoje você
veio de Wally!”
“Wally?!”
“É, ué. Listras vermelhas,
listras brancas, óculos... só faltava o gorrinho!”
Às vezes é bom enxergar o lado
positivo da história. Afinal, quem não quer ser um dos temas de Medianeras?