Acordou assustado de um sonho
enigmático e colorido, em que muitas coisas se viam claramente, muitas como
duplicadas sob os olhos de um homem ébrio que tropeça. Por mais que se
esforçasse, uma só cena lhe voltava à mente consciente, repetindo-se e repetindo-se:
um cervo, com uma pata dianteira presa, era atingido por uma lança enorme e
pesada. Sentia-se ofegar ao revisualizar a cena, e o suor escorria-lhe pelas
faces como um aguaceiro sem fim.
Devia ser um belo dia de Sol, porque
era o início de uma história tão irônica nos seus meandros que seria um belo
dia de Sol o melhor cenário para a chegada daquela frota de selvagens. É
impressionante como, de um dia a outro, uma vida equilibrada e pacata pode
tornar-se isolada e sem perspectiva. Não que sua vida tivesse sempre sido
assim, ao contrário; de não poucas tragédias se compunha o seu curso de dias
até a chegada a Mísia, até o reencontro com sua mãe, até sua aceitação como
herdeiro do trono do rei Teutra. E era como herdeiro e guerreiro que a sua atuação
nessa guerra era inevitável.
Não se soube muito bem por que tudo
começou. Enganados na sua rota, os aqueus ali chegaram e compreenderam que
estavam no lugar a que se dirigiam para exterminar, Troia, ou talvez tenham ali
parado para iniciar o que seria uma carreira de morticínios em série, sendo
Mísia somente mais uma vítima entre tantas outras. Télefo imiscuiu-se na batalha
e ofertou muitas almas a Hades, guerreiros de não pouco nome inclusive. Era robusto
e expedito na guerra; sabia manejar suas armas com perícia e proteger-se com
cuidado. Mas as Parcas haviam fiado sua queda e, fosse porque Télefo agora se
sentia o mais próximo da divindade paterna — de quem, aliás, possuía o porte e
o rosto—, fosse porque havia bebido pouco mais do que devia antes da batalha e
agora Baco o atraiçoasse, o destino prescrito era irrevogável.
Um tropicão halial num calhau, uma
queda ofegosa, uma lança enorme cravada na sua perna direita.
Mas não morreu. Por oito anos,
Télefo padeceu com uma ferida que não cicatrizava, até que, orientado por Apolo
e um oráculo, foi-se para Áulis, em busca de quem o havia danado na guerra,
Aquiles, filho de Peleu, o que inumeráveis males traria às hostes dos aqueus
como fruto da sua ira incontida. Tudo que sabia era que o machucado que o
atormentava só poderia ser sarado pelas mãos de quem o fizera. Acatando com
humildade a orientação do deus flecheiro e a aparência cenosa de um mendigo,
Télefo ofereceu aos aquivos a sua ajuda, em troca do favor de Aquiles: o
herdeiro mísio guiaria os Atridas e suas frotas até Troia, se Aquiles tão
somente consentisse em lhe curar a chaga.
Oito anos de sofrimento se resolveram
com uma pequena mancheia de ferrugem extraída à extremidade da longa lança.
Eram dois anos de espera a menos que os das dores de Penélope, mas, assim como
ela, Télefo só pôde curar-se e restabelecer-se na vida pela mão de quem lhe havia
feito a ferida. E assim o seu nome alcançou a imortalidade.