Enquanto escovo os dentes, olho pro teto e vejo, pouco acima da porta, a caixa da campainha. Desço os olhos e enxergo a porta, tão mais alta que eu. Não tão mais alta que eu. Faz alguns anos, eu era uma criança, eu olhava pro teto e pro topo da porta e me impressionava imensamente com a grandeza das coisas.
Eu queria que meu pai me carregasse na corcunda e era feliz quando podia bater o lustre de vime que tínhamos na sala com a minha própria mão. Há pouco tempo, eu fiquei frustradamente chocado, quando, fora da presença do meu pai, falando nele, minha mãe me revelou que ele não tinha mais que um metro e setenta e cinco, por aí. Como é possível?
Faz alguns anos, eu era uma criança, eu via um rapaz no ônibus e, na minha inocência, não o reconhecia como um homem, sabendo que ele era algo de intermediário entre mim e o meu pai, na seqüência do tempo. Eu me lembro de ter pensado muitas vezes nisto – e de tê-lo dito à minha mãe: quanto medo de andar de ônibus sozinho, assim, sem ninguém pra me dizer aonde saltar ou pra puxar a cigarra pra mim. Eu olhava pro futuro com medo da necessidade de ser aquilo que eu inevitavelmente me tornaria, como eu já pressentia.
Faz alguns anos também, eu era ainda uma criança, eu não compreendi o choro da minha mãe quando viu um arranhão cor de rosa na sua geladeira marrom. Todos os móveis da sua cozinha eram marrom, mesmo a mesa dobrável com tampo de azulejos de que a minha memória guarda uma imagem fotográfica. Por baixo do marrom, o zarcão rosa, para evitar a ferrugem, acho, ficou visível em um risco, pouco abaixo da marca, ali do lado do puxador. Aquela foi a primeira mudança de que eu me lembro, eu faria seis anos meses depois. Nos movimentos de sobe e desce dos móveis, na agitação do que vem contra o que vai, um arranhão se fez na porta da geladeira. Quando ela o viu, sentada no chão da cozinha, ela chorou.
Agora, depois de um dia cansado, eu, cansativo, com os músculos tensos e o pensamento ainda em linha de produção, tarde da noite, lavo a louça, e um descuidado copo se lança da minha mão. Em cima de outro, que se quebra. Antes que eu me dê conta do que de fato se passou, eu me sento no chão da cozinha e, em reprodução, compreendo aquele choro que me marcara tanto.
Hoje eu apreendo – e sinto falta da minha infância.