quarta-feira, julho 11, 2012

W.


Acordou assustado de um sonho enigmático e colorido, em que muitas coisas se viam claramente, muitas como duplicadas sob os olhos de um homem ébrio que tropeça. Por mais que se esforçasse, uma só cena lhe voltava à mente consciente, repetindo-se e repetindo-se: um cervo, com uma pata dianteira presa, era atingido por uma lança enorme e pesada. Sentia-se ofegar ao revisualizar a cena, e o suor escorria-lhe pelas faces como um aguaceiro sem fim.
Devia ser um belo dia de Sol, porque era o início de uma história tão irônica nos seus meandros que seria um belo dia de Sol o melhor cenário para a chegada daquela frota de selvagens. É impressionante como, de um dia a outro, uma vida equilibrada e pacata pode tornar-se isolada e sem perspectiva. Não que sua vida tivesse sempre sido assim, ao contrário; de não poucas tragédias se compunha o seu curso de dias até a chegada a Mísia, até o reencontro com sua mãe, até sua aceitação como herdeiro do trono do rei Teutra. E era como herdeiro e guerreiro que a sua atuação nessa guerra era inevitável.
Não se soube muito bem por que tudo começou. Enganados na sua rota, os aqueus ali chegaram e compreenderam que estavam no lugar a que se dirigiam para exterminar, Troia, ou talvez tenham ali parado para iniciar o que seria uma carreira de morticínios em série, sendo Mísia somente mais uma vítima entre tantas outras. Télefo imiscuiu-se na batalha e ofertou muitas almas a Hades, guerreiros de não pouco nome inclusive. Era robusto e expedito na guerra; sabia manejar suas armas com perícia e proteger-se com cuidado. Mas as Parcas haviam fiado sua queda e, fosse porque Télefo agora se sentia o mais próximo da divindade paterna — de quem, aliás, possuía o porte e o rosto—, fosse porque havia bebido pouco mais do que devia antes da batalha e agora Baco o atraiçoasse, o destino prescrito era irrevogável.
Um tropicão halial num calhau, uma queda ofegosa, uma lança enorme cravada na sua perna direita.
Mas não morreu. Por oito anos, Télefo padeceu com uma ferida que não cicatrizava, até que, orientado por Apolo e um oráculo, foi-se para Áulis, em busca de quem o havia danado na guerra, Aquiles, filho de Peleu, o que inumeráveis males traria às hostes dos aqueus como fruto da sua ira incontida. Tudo que sabia era que o machucado que o atormentava só poderia ser sarado pelas mãos de quem o fizera. Acatando com humildade a orientação do deus flecheiro e a aparência cenosa de um mendigo, Télefo ofereceu aos aquivos a sua ajuda, em troca do favor de Aquiles: o herdeiro mísio guiaria os Atridas e suas frotas até Troia, se Aquiles tão somente consentisse em lhe curar a chaga. 

Oito anos de sofrimento se resolveram com uma pequena mancheia de ferrugem extraída à extremidade da longa lança. Eram dois anos de espera a menos que os das dores de Penélope, mas, assim como ela, Télefo só pôde curar-se e restabelecer-se na vida pela mão de quem lhe havia feito a ferida. E assim o seu nome alcançou a imortalidade.